Uma versão preliminar do relatório da proposta de emenda à Constituição (PEC) que autoriza medidas de ajuste fiscal, a chamada PEC Emergencial, causou atritos entre o Congresso e a equipe econômica ao prever que parte das despesas de 2021 fique temporariamente fora do teto de gastos, a regra que limita o avanço dos gastos públicos.
O vazamento levou tensão ao mercado financeiro e fez com que o Ministério da Economia se posicionasse contra a ideia. O relator do projeto, senador Márcio Bittar (MDB-AC), negou ser a favor da flexibilização das regras fiscais.
O texto, divulgado inicialmente pelo jornal “O Estado de S. Paulo” e obtido pelo GLOBO, prevê a destinação de cerca de R$ 35 bilhões em recursos parados em fundos públicos — que hoje não podem ser usados livremente — para áreas como a erradicação da pobreza e a revitalização da Bacia do São Francisco.
Os gastos feitos com esse dinheiro ficariam fora do teto por um ano. A brecha poderia ser usada para financiar uma ampliação do Bolsa Família sem a limitação da trava fiscal.
As primeiras informações sobre a medida foram mal recebidas pelo mercado, ao indicar uma flexibilização da regra que impede que gastos públicos cresçam mais que a inflação registrada no ano anterior. O Ministério da Economia divulgou nota em que afirmou ser “contra qualquer proposta que trate da flexibilização do teto de gastos, mesmo que temporária”.
A possibilidade de flexibilização causou mal-estar na equipe econômica, em um momento em que há dúvidas sobre a sustentabilidade das regras fiscais após os gastos emergenciais para combater a pandemia.
Interpretação errada
Assim que o teor do relatório começou a circular, o ministro da Economia, Paulo Guedes, ligou imediatamente para Bittar e o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Nessas conversas, de acordo com relatos de pessoas que presenciaram os telefonemas, Guedes ouviu dos senadores que não havia tentativa para flexibilizar o limite de gastos e que isso não seria votado pelos parlamentares.
Guedes ligou para o presidente Jair Bolsonaro que, segundo esse relato, garantiu que não há flexibilização do teto e que não acertou nada nesse sentido com congressistas.
No fim do dia, Bittar negou a possibilidade de flexibilizar o teto e disse que essa seria uma interpretação errada da medida em seu relatório.
— Essa interpretação está errada. Não há na proposta qualquer possibilidade de flexibilizar o teto de gastos — disse o senador ao GLOBO.
Em um esforço para reverter a má impressão, o parlamentar divulgou nota oficial com o mesmo teor. No comunicado, ele afirma ainda que o documento que vazou à imprensa não é oficial, embora fontes confirmem que o relatório divulgado partiu de assessores do próprio parlamentar.
“Sou apoiador da agenda econômica do governo, representada pelo ministro Paulo Guedes, e está fora de cogitação qualquer medida que flexibilize o teto de gastos”, diz o texto.
O relatório do senador, que foi finalizado na tarde de ontem, é um compilado de três PECs que vinham sendo discutidas desde novembro do ano passado no Congresso. Segundo fontes que participaram dos debates, o ruído foi causado por um erro na hora de combinar os textos.
Um dos trechos incluídos na nova redação tem como origem a PEC dos Fundos, que libera recursos de fundos públicos. A exceção ao teto para gastos feitos com esse dinheiro já constava de versão anterior do projeto, apresentada em fevereiro pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), relator da proposta.
O vazamento aumentou a pressão no Congresso de parlamentares que defendem aumento de gastos em 2021.
Consequências negativas
Esse não é o primeiro atrito causado por uma versão do relatório de Bittar para a PEC emergencial. Em setembro, o parlamentar propôs adiar o pagamento de precatórios — dívidas judiciais da União — para financiar o programa social.
Para economistas, a flexibilização do teto poderia trazer consequências negativas para a economia do país, como aumento de juros.
— Essa flexibilização, mesmo que temporária, é insustentável. Não dá para prever o que aconteceria com juros e câmbio se isso fosse aprovado, mas pioraria muito o cenário — avaliou o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore.
Elena Landau, economista e ex-diretora do BNDES, critica ainda a ideia de desvincular recursos dos fundos.
— Essa ideia de desvincular (gastos) para tirar do teto para fazer políticas que os parlamentares vão escolher não faz sentido. Há ali questões completamente desnecessárias, como as relacionadas ao Rio São Francisco, que já estão em outros projetos, como o da Eletrobras. Os parlamentares querem é fazer política — observou.
Na visão da economista Monica de Bolle, professora da Universidade Johns Hopkins, o momento é de rediscutir o teto de gastos. Ela defende uma regra que permita ampliar despesas em momentos de necessidade e reduzi-las quando a atividade econômica estiver em alta:
— Não defendo que se abandone o teto, mas ele deve ter uma regra viável. A ideia é pegar essa regra e torná-la flexível a ponto de dar conta dos gastos de saúde, educação e proteção social que precisam ser feitos dada a pandemia
Apesar da turbulência, Bittar pretende apresentar o novo texto nos próximos dias às lideranças no Congresso. A proposta é uma versão enxuta do que vinha sendo discutido nos últimos meses. Não há menção ao novo programa social Renda Cidadã nem a medidas mais duras de redução de gastos, como a previsão de cortes de salários e jornadas de servidores públicos.
As principais ações para conter despesas são a antecipação dos chamados gatilhos do teto de gastos. Assim, medidas como a proibição de concursos públicos e concessão de reajustes ao funcionalismo passam a ser acionadas caso as despesas obrigatórias do governo atinjam 95% do total dos gastos públicos.
Também há uma previsão de cortes em benefícios tributários. Pela proposta, o presidente Jair Bolsonaro terá que enviar ao Congresso um projeto para cortar incentivos em 10% já em 2021. Isso significaria um aumento de R$ 30 bilhões na arrecadação federal.
O GLOBO