Folha de S.Paulo – 23/01/2022 –
Depois de anos mantendo estoques baixos de matérias-primas, empresas voltaram a ter insumos parados em armazéns. Sem as garantias de preço e prazo do pré-pandemia, os negócios voltaram a estocar peças para evitar o risco de um pedido não ser atendido por falta de material para produzir.
Quase dois anos depois do início da crise que desorganizou as cadeias de abastecimento, dificuldades com insumos ainda assombram as empresas. Em dezembro, 83% das micro e pequenas indústrias de São Paulo ainda relatavam alta de preços em matérias-primas, segundo pesquisa Datafolha para o Simpi (sindicato do setor). Para 51%, ainda havia falta de produto nos fornecedores.
A solução encontrada pela Invent Smart Intralogistics Solutions foi estocar o equivalente a um ano de peças em aço usadas na construção de esteiras eletrônicas, usadas em aeroportos e centros de distribuição logísticos.
A decisão, do início de 2021, foi tomada para evitar flutuações de preços e prazos acima de 90 dias para entrega. A cada baixa no estoque, a empresa prepara um novo pedido na sequência, para que o nível de material excedente seja mantido.
Além disso, a fábrica substituiu diversas peças metálicas por plástico duro. A produção foi internalizada a partir da compra de quatro impressoras 3D. As trocas exigiram uma elaborada adaptação dos projetos, mas valeram a pena, diz o cofundador e vice-presidente de vendas, Augusto Ghiraldello.
“A produção 100% em aço era uma espécie de commodity no mercado. Só que, além do preço, os prazos aumentaram muito. Tenho contratos com sanções caso não entregue ao cliente. Fomos obrigados a achar alternativas”, afirma.
No ano passado, sem caixas de papelão para embalar os materiais pedagógicos que produz em uma fábrica em Santo André (ABC), Cesar de Oliveira Guimarães, diretor-executivo da MMP, precisou despachar pedidos acondicionados diretamente sobre os pallets de transporte.
“Hoje já encontro para comprar, mas com preço alto e demora na entrega. Minha programação financeira ficou mais comprometida, o que me obrigou a fazer compras maiores”, diz. As caixas, que custavam R$ 4,80 no início de 2020, agora saem por R$ 8,80.
A alta no preço do polímero bruto usado na confecção dos materiais em plástico e EVA chegou a passar de 150%. Recentemente, o valor se estabilizou em patamares menores, mas ainda equivale ao dobro do que o praticado há dois anos, segundo o executivo.
Para evitar dor de cabeça, Guimarães diz ter aumentando o nível de estoque de matérias-primas e de produtos prontos. “Todo mundo sempre dizia que ter estoque é ruim, porque é dinheiro parado, mas nunca achei que fosse boa ideia não ter produto, porque minha venda é sazonal e não posso correr o risco de não fazer [o negócio].”
A sucessão de dificuldades levou a um prejuízo que, para ser estancado, exigiu que a empresa aumentasse os preços em 20%, em média. “Passei o ano segurando preço, mas quando vi, estava no negativo, e isso que não considerei o custo de estoque. Já sei que vou ter que fazer novo reajuste em alguns meses”, diz Guimarães. “É triste que os meus fornecedores dizem exatamente a mesma coisa: ‘compra agora porque vai subir’.”
Segundo a pesquisa do Simpi, além da alta de preços de matérias-primas, as micro e pequenas indústrias também estão pressionadas pela elevação geral de custos. Gastos com água, energia elétrica, transporte e logística e mão de obra —tudo ficou mais caro.
“A elevação de custos foi a pior da série histórica. Vemos uma alta persistente, mês a mês, que ainda afeta quase 85% das empresas”, diz Joseph Couri, presidente do Simpi.
Sondagem da CNI (Confederação Nacional das Indústrias) mostra que o nível de produção do setor, medido pela utilização da capacidade instalada, está em 68%. O percentual é menor do que os 70% registrados em 2020, mas está superior à média para meses de dezembro (67%).
Os estoques das empresas (que referem-se aos produtos prontos, não aos insumos para produção) ficaram em patamar estável e baixo. A escala criada pela CNI prevê que acima de 50 pontos há estoque superior ao planejado. Em dezembro de 2021, o índice ficou em 49,1 pontos.
Na avaliação do economista Rafael Cagnin, do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), as condições de estoque são menos graves do que há um ano e, em alguns setores, já estão próximos de um patamar confortável
Esse indicador é importante porque ele sinaliza se os setores da indústria ainda estão vulneráveis aos repiques e gargalos da cadeia de distribuição. A variante ômicron do coronavírus, porém, que levou a uma nova disparada de casos da doença, torna mais imprevisível a normalização das cadeias de distribuição.
“Vem melhorando muito lentamente e o quadro já é menos agudo. Acho que ainda vai 2022 inteiro para estabilizar. Enquanto houver pandemia, esse será um risco.”
A quebra das cadeias não é um problema só do Brasil. Em todo o mundo, indústrias de diversos setores ainda correm para dar conta de novas demandas e das transformações aceleradas pela pandemia.
Na quinta-feira (20), durante painel sobre o assunto no Fórum Econômico Mundial, o sultão Ahmed bin Sulayem, presidente-executivo da gigante da logística DP World, disse que pandemia escancarou as fragilidades da cadeia de suprimentos e apostou que ainda levará cerca de dois anos para as condições melhorarem. A digitalização do setor pode ser um dos caminhos, segundo ele.
“O futuro é digital” é um bordão bastante repetido nos painéis do fórum. E a digitalização do mundo é parte de outra dificuldade global agravada com a pandemia, que é a falta de chips semicondutores.
Para a diretora-geral da OMC (Organização Mundial do Comércio), Ngozi Okonjo-Iweala, a reorganização das cadeias de suprimentos pode ser uma oportunidade de melhorar a distribuição dos negócios pelo mundo e integrar países em desenvolvimento.
“Precisamos ver a cadeia de suprimentos não apenas como um problema, mas como uma oportunidade. Quero convocar os investidores, como o Pat, de usar isso como uma oportunidade”, disse, citando o presidente-executivo da Intel, Pat Gelsinger, que também participou do painel.