‘Panorama do Emprego’ (Editorial)

As plataformas digitais que conectam negócios e clientes aos trabalhadores oferecem potenciais vantagens a ambos e, por meio deles, à sociedade. Mas, à medida que borram a tradicional distinção entre empregados e autônomos, também exigem adaptações regulatórias que garantam negócios sustentáveis e oportunidades de trabalho decentes. Tais desafios – abruptamente ampliados pela pandemia – foram o tema principal da edição de 2021 do Panorama do Emprego da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Há dois tipos de plataformas digitais de trabalho: aquelas em que tarefas – como serviços legais, financeiros, de tradução, programação, etc. – são realizadas online e remotamente; e aquelas em que os serviços são prestados presencialmente – como táxi, entregas, tarefas domésticas, etc. A OIT estima que na última década as plataformas digitais de trabalho quintuplicaram.

Para os negócios, elas oferecem oportunidades de melhorar a eficiência, reduzir custos e alcançar mercados mais amplos. Para os trabalhadores, oferecem mais flexibilidade, diversidade geográfica, demanda, conectividade com clientes, além de criar ofertas de trabalho para comunidades marginalizadas. Contudo, para que essas oportunidades sejam aproveitadas, certos desafios – como remuneração digna, benefícios sociais, segurança, representação ou equilíbrio de poder – precisarão ser enfrentados.

As plataformas argumentam que os trabalhadores trabalham para si mesmos, e que elas apenas intermedeiam a sua oferta à demanda dos clientes. Os críticos alegam que essa é uma maneira de gozar dos serviços dos trabalhadores, furtando-se às obrigações trabalhistas.

Decisões judiciais recentes – paradigmaticamente das cortes na Califórnia, o crisol da economia digital – têm caminhado na direção de equiparar os prestadores de serviços nas plataformas digitais a empregados. Considerando que a maioria dos trabalhadores das plataformas digitais não goza de proteções sociais como previdência ou seguro-saúde e seguro-desemprego, e frequentemente se submete a condições estabelecidas unilateralmente pelas empresas, essa é uma solução em linha de princípio positiva, mas, se mal calibrada, pode encarecer demais os produtos a ponto de inviabilizar o modelo de negócios ou eliminar vantagens que os próprios trabalhadores buscam, como a flexibilidade e a autonomia.

O dilema sugere que os esforços regulatórios precisarão ser orientados a soluções híbridas, adaptadas à crescente intersecção entre o emprego tradicional e o trabalho independente. Embora não haja soluções pré-formatadas para um mercado em formação, entidades como a OIT e o Fórum Econômico Mundial apontam uma série de princípios que deveriam nortear o diálogo social e a cooperação regulatória entre as plataformas, os trabalhadores e os governos, rumo a uma distribuição equitativa de direitos e deveres.

Nesse processo, é fundamental garantir que os trabalhadores gozem plenamente do direito de negociação coletiva e que tenham acesso às cortes de sua jurisdição ou a mecanismos de disputa. Garantir a transparência em relação aos algoritmos empregados também é peça-chave para atingir uma justa composição entre os interesses das plataformas e dos trabalhadores. O principal desafio é estabelecer um sistema de classificação do status dos trabalhadores digitais. De acordo com a proporção entre o grau de controle das plataformas e o grau de flexibilidade e autonomia dos trabalhadores, eles podem ser equiparados a empregados ou classificados como autônomos. Mas muitos países têm se orientado rumo à criação de uma categoria intermediária.

O princípio fundamental é que, seja qual for a classificação, todos os trabalhadores devem gozar de certas garantias, como as relativas à remuneração justa e proteções sociais básicas – cuja necessidade a covid-19 só acentuou. Hoje, as plataformas digitais têm muito pouca responsabilidade nesse sentido. A mesma capacidade de inovação que elas têm demonstrado no campo tecnológico está para ser testada no campo social.

O ESTADO DE S. PAULO

Compartilhe