Vergonha

O Estado de S.Paulo – editorial

Há poucos dias, o presidente Jair Bolsonaro, após reiteradas ameaças de golpe e seguidas demonstrações de desapreço pelo decoro do cargo, comprometeu-se por escrito a dialogar. Como previsto, no entanto, suas promessas de moderação e racionalidade na tal Declaração à Nação não duraram nem um mês. Em discurso na ONU, Bolsonaro, como se estivesse falando a seus fanáticos apoiadores, esbanjou ignorância, má-fé e oportunismo, expondo o Brasil a um vexame mundial. Ou seja, foi o mesmo de sempre.

Seu pronunciamento foi uma profusão de meias-verdades e mentiras completas, insistindo no negacionismo e na pregação para sua base eleitoral. Bolsonaro ignora a diferença entre discursar na Assembleia-Geral da ONU e falar no cercadinho do Palácio da Alvorada.

“O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo”, disse Bolsonaro. Raras vezes se viu tanta falsidade em uma só frase. Bolsonaro desrespeita a Constituição praticamente desde que tomou posse. Quanto aos militares, não são poucos os que nas Forças Armadas consideram que a associação com a irresponsabilidade bolsonarista vem desgastando a imagem do Exército. Já em relação à família, a única que Bolsonaro valoriza é a dele mesmo.

“Estávamos à beira do socialismo”, disse Bolsonaro, sem qualquer respaldo nos fatos – que, para o bolsonarismo, não têm valor. Importa apenas o discurso, voltado à manipulação e à desinformação. “Apresento agora um novo Brasil com sua credibilidade já recuperada”, declarou o presidente que transformou o País em pária internacional.

Em suas palavras, “promovemos o ressurgimento do modal ferroviário”. A realidade: Bolsonaro editou uma imprópria medida provisória sobre o tema, atropelando o Legislativo e a segurança jurídica. “Grande avanço vem acontecendo na área do saneamento básico”, disse Bolsonaro. Os fatos: o marco do saneamento foi aprovado, apesar do desinteresse do Executivo.

“Nenhum país do mundo possui uma legislação ambiental tão completa. Nosso Código Florestal deve servir de exemplo para outros países”, disse Bolsonaro na ONU. Sim, o Código Florestal de 2012 é uma legislação equilibrada, fruto de anos de trabalho e de negociação política – ou seja, a antítese do bolsonarismo. Além de não ter promovido nenhuma lei minimamente semelhante ao Código Florestal, Bolsonaro diminuiu os mecanismos de controle ambiental e ainda teve um ministro do Meio Ambiente incluído em inquérito sobre crimes ambientais.

“Sempre defendi combater o vírus e o desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade”, disse aquele que fugiu dos dois problemas com a mesma irresponsabilidade. Nas palavras de Bolsonaro, a covid-19 sempre foi uma “gripezinha”. Por isso – e por tantas outras omissões –, Bolsonaro não pode se vangloriar dos atuais números da vacinação no Brasil. Os resultados de imunização da população foram obtidos contra a vontade do Palácio do Planalto, graças ao esforço do SUS e de vários governadores. Basta ver que Jair Bolsonaro é o único presidente do G-20 que se recusou a tomar vacina contra a covid-19.

Para culminar a insensatez, Bolsonaro disse apoiar “a autonomia do médico na busca do tratamento precoce”. Em outras palavras, o presidente continua defendendo drogas amplamente descartadas como tratamento contra a covid, enquanto se nega a tomar a vacina. A atitude alinha-se à lógica bolsonarista, em que a verdade é tratada como inimiga. Basta ver o que disse Bolsonaro sobre a atual situação econômica do País: “Na economia, temos um dos melhores desempenhos entre os emergentes”.

Ao desprezar os fatos e a civilidade, Jair Bolsonaro humilha e desonra o País internacionalmente. Os gestos obscenos do ministro da Saúde contra manifestantes em Nova York não foram um deslize num momento de destempero. Trata-se da expressão mais pura do bolsonarismo. Nada é por acaso, como mostrou o discurso do presidente ontem. Nem mil Declarações à Nação mudarão o fato de que Bolsonaro é e sempre será Bolsonaro.

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