Valor Econômico –
O governo federal tenta resolver, na canetada, uma discussão que trava na Justiça com empresas que fornecem vale-alimentação ou refeição para os empregados. Utilizou a Medida Provisória nº 1.108 – a chamada MP do Trabalho Híbrido – para alterar a lei do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) e, desta forma, validar as limitações recém-criadas para a dedução dessas despesas no Imposto de Renda (IRPJ).
Essas limitações foram impostas pelo governo de Jair Bolsonaro no mês de novembro, com a edição do Decreto nº 10.854. Desde lá, as empresas vêm recorrendo ao Judiciário e têm conseguido decisões favoráveis, ou seja, para continuar deduzindo os custos de forma integral.
Existem inúmeras decisões na primeira instância e, pelo menos, dois Tribunais Regionais Federais (TRF) também se posicionaram a favor das companhias: o da 3ª Região, com sede em São Paulo, e o da 1ª, em Brasília.
O Programa de Alimentação do Trabalhador foi instituído pela Lei nº 6.321, de 1976, com o objetivo de incentivar as empresas a fornecer alimentação aos seus funcionários. Pela norma, poderiam deduzir o dobro dos valores gastos com os benefícios de vale-refeição e alimentação, desde que não ultrapassem 4% do imposto devido no ano.
As participantes são, em maioria, de grande porte. Têm alto número de empregados e recolhem o Imposto de Renda com base no lucro real.
Com o Decreto nº 10.854, editado pelo governo federal em novembro, novas condições foram estabelecidas. A norma permite a aplicação do desconto apenas sobre a despesa com trabalhadores que recebem até cinco salários-mínimos (R$ 5,5 mil) e, no máximo, o equivalente a um salário-mínimo por empregado.
As empresas reagiram a essas limitações entrando com ações na Justiça. O principal argumento é de que o Executivo não poderia, por meio de um decreto, criar restrições que não estão previstas na Lei do PAT.
Esse é o ponto que o governo tenta consertar com a MP do Trabalho Híbrido, que foi publicada na segunda-feira. A medida provisória modifica o artigo 1º da Lei do PAT – a nº 6.321, de 1976. Inclui, no texto original, que as empresas poderão fazer as deduções “na forma e de acordo com os limites em que dispuser o decreto que regulamenta a lei”.
“O Poder Executivo tentou convalidar a alteração de novembro [por meio de decreto] sem fazer muito barulho”, diz o advogado Carlos Vidigal, do escritório Vinhas e Redenschi.
É provável que, a partir de agora, a Fazenda Nacional use essa alteração na lei como argumento para tentar reverter as decisões judiciais que favorecem as empresas. Já que a legislação passou a prever o decreto, não haveria mais qualquer ilegalidade na limitação do PAT.
Essa situação, se validada, afirma o advogado Gabriel Baccarini, do escritório Cascione, pode abrir uma porta perigosa no direito tributário. “O que garante que não haverá o mesmo com outros tributos? Imagine deixar nas mãos do Executivo todas as formas de limitação de tributos”, diz.
Na visão do advogado, decretos servem somente para regulamentar o que consta na lei. Ao criar ou restringir direitos de contribuintes, acrescenta, estará violando o princípio constitucional da legalidade. “Nesse caso do PAT, a lei em si praticamente perde o efeito. Fica nas mãos do Poder Executivo, via decreto, dizer quais são as situações e os limites. Está relativizando, de forma indevida, o princípio da legalidade tributária”, frisa Baccarini.
Essa linha de argumentação é a que vem sendo adotada por juízes e desembargadores ao atender os pedidos das empresas para afastar a limitação imposta pelo decreto que foi publicado em novembro.
Em uma das decisões, bastante recente, a desembargadora Mônica Autran Machado Nobre, do TRF da 3ª Região (SP e MS), afirma que o decreto “extrapolou a sua função” ao alterar a base de cálculo das deduções e, consequentemente, aumentar o tributo a ser pago pelas companhias. Ela também citou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre normas infralegais (processo nº 5001504-62.2022.4.03.0000).
Esse caso teve atuação dos advogados Leo Lopes e Andre Henrique Azeredo Santos, do FAS Advogados. E, para eles, a alteração do artigo 1º da Lei do PAT não será suficiente para mudar essa situação e reverter os resultados a favor do governo.
“Porque o que está sendo dito, na prática, é que a lei não pode delegar para um decreto questões que envolvem redução de benefício e gerem um aumento tributário indireto. Qualquer medida que afete base de cálculo, provocando aumento de tributo, tem que vir por lei”, enfatiza Lopes. E, ainda que fosse possível, acrescenta o advogado, o decreto só poderia mexer em um período futuro.
Para o advogado Carlos Vidigal, do escritório Vinhas e Redenschi, se o decreto for aceito por causa da MP, a mudança não poderá valer neste ano de 2022. “Em virtude do princípio da anterioridade anual. O STF [Supremo Tribunal Federal] tem precedentes reconhecendo que redução de benefício implica aumento indireto de tributos. Assim, aplica-se tanto a anterioridade anual como a nonagesimal.”