Uma questão processual poderá reabrir o prazo para que poupadores entrem com ações judiciais contra os planos econômicos dos anos 80 e 90 – Bresser, Verão e Collor -, a chamada discussão dos expurgos inflacionários. Se confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), “ressuscitaria” todos os casos já prescritos. O impacto seria de mais de R$ 150 bilhões para o sistema financeiro.
Por enquanto, dos três ministros que votaram, dois se posicionaram pela possibilidade de reabertura do prazo. Mas a conclusão depende dos votos de outros dez. Os ministros da Corte Especial – a quem cabe a última palavra do STJ – pretendem concluir neste mês o julgamento. E o efeito do acórdão será repetitivo, vinculante para o Judiciário. Eles discutem se a ação coletiva interrompe o prazo para a propositura de ações individuais sobre o mesmo tema. Na prática, se eles entenderem que sim, os poupadores que não buscaram o Judiciário nas últimas décadas ainda terão chances de reivindicar o direito à correção pelas perdas decorrentes dos planos Bresser (1987), Verão (1989) e Collor I e II (1990 e 1991). Isso porque haveria uma mudança na contagem do prazo que o poupador tem para entrar com a ação na Justiça. Pela regra geral, eram 20 anos a partir da implementação do plano econômico. Assim, ninguém mais teria tempo hábil para buscar o Judiciário.
O formato atualmente em debate no STJ, porém, garantiria um prazo extra. O poupador teria dez anos – a metade do prazo total – contados a partir do encerramento da ação coletiva, para buscar, individualmente, o seu direito na Justiça. O caso concreto que chegou à Corte Especial envolve uma poupadora do Rio Grande do Sul (Resp nº 1233314) que diz ter sofrido prejuízos com o Plano Verão. Ela entrou com ação judicial contra a Caixa Econômica Federal (CEF) no ano de 2009. Mas o seu direito foi considerado prescrito tanto na primeira como na segunda instância da Justiça. O prazo de 20 anos, afirmaram o juiz e os desembargadores, havia se esgotado um ano antes.
A poupadora recorreu ao STJ. Afirmou que associações em defesa do consumidor ingressaram com ação coletiva para tratar do mesmo tema no ano de 2007, o que interrompeu o prazo de prescrição da ação individual. O advogado Eduardo Davoglio, representante da poupadora no processo, diz que o artigo 240 do Código de Processo Civil (CPC) e os artigos 202 e 203 do Código Civil dão respaldo à afirmação. Consta nos dispositivos que a prescrição poderá ser interrompida por ato judicial que “constitua em mora o devedor”. O advogado sustenta que a citação dos bancos, feita nas ações coletivas, ou seja, informando sobre os valores devidos aos poupadores, cumpre esse papel. “As entidades entraram com as ações em nome dos consumidores. O poupador tem a opção de esperar por aquela ação para, se achar necessário, entrar com o seu processo individual”, diz.
Esse caso está em julgamento, na Corte Especial do STJ, desde 2016. Naquela ocasião, somente o relator, ministro Luis Felipe Salomão, proferiu voto. Ele se posicionou contra a reabertura do prazo. Houve um pedido de vista e o processo ficou parado por cinco anos. Voltou à pauta na quarta-feira, com os votos dos ministros Herman Benjamin e Nancy Andrighi. Ambos entenderam pela possibilidade do prazo mais amplo. Na quarta-feira, o debate foi suspenso por um pedido do ministro Mauro Campbell, que prometeu trazer o voto na próxima sessão da Corte Especial, marcada para o dia 16. Pelo regimento do STJ, não seriam mais possíveis novos pedidos de vista. Herman Benjamin e Nancy Andrighi afirmam que há jurisprudência no tribunal permitindo a interrupção do prazo. “A legislação dá a opção ao jurisdicionado de ingressar com a ação coletiva ou utilizar título executivo judicial para requerer a execução individual”, disse Benjamin, citando o artigo 240 do CPC.
Os dois ministros levaram em conta ainda dispositivos do Código de Defesa do Consumidor. “Uma sentença julgada procedente em ação coletiva, tem o efeito de tornar certa, de forma automática, a obrigação do réu de indenizar danos individuais decorrentes do mesmo ato ilícito”, disse Nancy. Esse efeito, acrescentou, está presente em todas as ações coletivas, “mesmo que não versem sobre direito consumerista”. Na ocasião, o relator, ministro Salomão, defendeu novamente o seu posicionamento. “O que estamos tratando aqui não é execução individual ou prazo para execução individual da sentença coletiva. Mas de reavivar um prazo para as ações individuais que, hoje, estão mortas”, frisou.
Para Salomão, o desejo de interromper a prescrição com a ação coletiva se choca com os princípios da segurança jurídica e da legalidade. Ele destacou que a ampliação do prazo poderá, inclusive, impactar o acordo de pagamento firmado entre bancos, poupadores e o governo. “Se nós reconhecermos que as ações coletivas interrompem o prazo para as ações individuais, o tribunal terá dado com uma mão e tirado com a outra. Porque vão voltar todas aquelas ações individuais. Vai ser uma avalanche”, afirmou. O chamado “acordão” foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano de 2018. Na época falava-se em cerca de 730 mil ações judiciais em curso. Os bancos se comprometeram em pagar a diferença entre o índice inflacionário vigente no período e o de atualização monetária usado para a correção das poupanças. Já o poupador, como contrapartida, ao aceitar a proposta, tem que desistir do processo judicial. O prazo de adesão se encerra no ano de 2025.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) detalha, por meio de nota, que o impacto da questão seria de “ao menos” R$ 150 bilhões porque, segundo estudo técnico elaborado pelo economista Bernard Appy, as cifras ficariam entre R$ 300 bilhões e R$ 400 bilhões. Mas a entidade pondera que estimativas mais precisas dependeriam de se saber qual é o exato universo de poupadores, “podendo alcançar inclusive todos os casos que já estavam prescritos”. Na nota, a Febraban afirma ainda que se o prazo for reaberto “haverá uma eternização dos conflitos, com reflexos para todas as áreas, incluindo consumo, previdenciária e ambiental”. Diz que todos os poupadores que ainda não propuseram ação teriam esse direito, situação que “não condiz com as regras processuais vigentes”. Já a CEF disse ao Valor que não comenta casos em julgamento.
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