‘Sensação é que falta gestão. Brasil está entre os que sofrem mais com crise’, diz Jerome Cadier

Além da crise econômica e sanitária, o setor aéreo pena com o aumento do preço do combustível, com a desvalorização do real e com restrições impostas por outros países que impedem brasileiros de viajar para o exterior. Três medidas podem solucionar todos esses problemas, segundo o presidente da Latam no Brasil, Jerome Cadier: ampliação da capacidade de atendimento aos doentes, distanciamento social e ajuda econômica para empresas e pessoas que perderam renda. Por enquanto, porém, ele vê uma certa desorganização no governo que prejudica a recuperação do País e a do setor. “A sensação é a de que falta gestão. Todo mundo está lidando com a crise. Alguns países estão lidando melhor; outros não. O Brasil está no grupo que claramente sofre mais com a crise”, afirma.

O executivo destaca também que, além de conter a pandemia, o governo e o Congresso precisam, paralelamente, tocar as reformas administrativa e tributária. “Sei que é difícil falar de reformas quando você está no meio de uma pandemia, mas continuamos com uma necessidade tremenda de reformar o Estado. Se postergarmos isso, também vamos postergar o crescimento que o Brasil precisa.” A seguir, os principais trechos da entrevista.

A economia se deteriorou mais do que era esperado neste início de ano. Que impacto você prevê para o setor aéreo e o que precisaria mudar para haver uma recuperação?
Tínhamos um cenário um pouco diferente para 2021. Estávamos mais otimistas na segunda metade de 2020, mas essa segunda onda está mais profunda e nos fazendo repensar a retomada. Acho difícil a gente separar economia de saúde. Vamos conseguir recuperar a economia mais rapidamente quanto mais rápido lidarmos com o problema da saúde. A gente precisa crescer a capacidade de atendimento de doentes, construir medidas de distanciamento social para reduzir a pressão sobre o sistema de saúde e de ajuda na retomada da economia. Para mim, são essas três coisas. Alguma coisa a gente viu nos últimos 12 meses nessas frentes. Sempre podemos achar que poderia ser melhor ou pior, mas de alguma forma avançamos.

Onde avançamos?
No ano passado, construíram capacidade de atendimento, hospital de campanha. Mas não vimos tanta coisa em 2021. Os hospitais de campanha foram desmobilizados e, de alguma forma, aquilo se perdeu um pouco. Em relação às medidas de distanciamento, vou pegar o exemplo das companhias aéreas. A Latam foi a primeira no Brasil a anunciar que só transportaria passageiros com máscara. E sobre a ajuda econômica para a retomada, também falando do nosso setor, o Ministério da Infraestrutura trabalhou nas medidas emergenciais que foram absolutamente necessárias: espaço de estacionamento (para aviões) nos aeroportos, postergação de recolhimento de taxas aeroportuárias, que são pesadas, e postergação da devolução (do dinheiro de passagens) para clientes. Então, houve um trabalho para preservar o setor durante a fase mais aguda da crise.

É preciso um lockdown?
Pode chegar a um extremo de lockdown, mas falhamos em coisas mais básicas. O uso de máscara, por exemplo. Até pouco tempo atrás, muitos do governo não eram vistos com máscara em ambientes públicos. Havia eventos juntando muita gente, o que é preciso evitar. A mensagem não foi consistente. Nas últimas duas semanas, vi mais gente do governo com máscara do que vi nos últimos 12 meses. Tem de ser assim. Tinha de ser assim desde o começo. Então, pode chegar ao extremo de ter de fazer restrição ao movimento, fechar o comércio, dependendo da capacidade de atendimento dos hospitais, mas tem mais coisa a fazer, tanto na capacidade de atendimento quanto nas medidas de distanciamento, na clareza da comunicação, na transparência. Na rua, metade das pessoas que vejo não está de máscara. Esse tipo de mensagem (para usar máscara) tinha de ter sido repetida desde o começo para as pessoas entenderem que é necessário. Eventualmente, você não chegaria à situação de que precisa fechar a cidade. Sobre a ajuda na economia, acho que a ajuda emergencial foi fundamental. Está sendo reeditada agora e é necessária. Temos uma quantidade enorme de gente sem renda que precisa da ajuda do Estado. E, eventualmente, as empresas talvez precisem de medidas que ajudem o capital de giro delas. Não estou falando das aéreas, mas talvez hotéis, restaurantes, negócios pequenos e médios. Esses estão sem acesso a crédito.

O governo está na velocidade adequada nessa frente?
É difícil generalizar. Vou pegar o exemplo das aéreas. Vi o Ministério da Infraestrutura ligado nos 220 e absolutamente consciente de quão profunda era a crise desde o primeiro dia. Já do lado (do Ministério) da Economia, a gente, durante meses, discutiu uma eventual ajuda de crédito que não se materializou. Então, quando você fala do governo, no caso das aéreas, teve uma velocidade muito mais adequada no Ministério da Infraestrutura e talvez um desejo de que a gente tivesse avançado mais rápido com o Ministério da Economia. Mas também acho que não dá para a gente ficar só na emergência. A gente tem uma crise brutal que precisa ser enfrentada com a liderança do governo. Há uma necessidade de reformas estruturais, que não deveriam ser adiadas. Sei que é difícil falar de reforma administrativa e tributária quando você está no meio de uma pandemia, mas continuamos com uma necessidade tremenda de reformar o Estado. As reformas são fundamentais para a recuperação econômica quando todo mundo estiver vacinado. Se postergarmos isso, também vamos postergar o crescimento que o Brasil precisa.

O desempenho da economia e do setor aéreo em 2020 foram ruins. Podemos ter algo semelhante neste ano?
É muito difícil a gente comparar os dois anos. No ano passado, até quase o fim de março, o setor estava em uma tendência bastante positiva. Depois teve uma freada gigante em abril, maio e junho e uma retomada gradual no segundo semestre. Este ano, a gente vinha na retomada, mas o freio já veio em janeiro. Fevereiro e março foram muito ruins, com vendas 80% abaixo do que eram antes da pandemia. Talvez o freio dure mais do que no ano passado e a reaceleração seja mais lenta, mas, quando ela realmente vier, deve ser mais forte. Em mercados em que a vacinação avançou mais rapidamente, nos Estados Unidos, por exemplo, você já vê um desejo bastante grande para programar viagens para junho, julho e agosto. As vendas no último (penúltimo) fim de semana nos EUA foram as melhores desde o começo da pandemia. Então, você tem uma aceleração rápida a partir do momento em que um volume maior de pessoas estão vacinadas. Aqui, acho que a gente partiu tarde na obtenção da vacina. Deixamos muito tempo passar no início da pandemia e, agora, estamos tentando correr atrás. O problema é que perdemos o momento inicial das negociações. As empresas farmacêuticas já assumiram compromissos de volume (com outros países). É difícil neste momento compensar um atraso inicial. Por outro lado, uma vez tendo a vacina, o Brasil é extremamente eficaz para aplicá-la. Então, a partir do momento em que tivermos realmente a vacina, nossa curva de imunização pode ser mais rápida.

Outros fatores não estão ajudando o setor, como o real. Parte dos economistas credita a desvalorização da moeda a uma crise de credibilidade no governo. Qual o impacto da desvalorização no setor e como aliviar essa pressão?
60% dos gastos de uma aérea são dolarizados. Então, o aumento do dólar nos torna menos competitivos. O combustível, que também vem subindo acima das previsões que tínhamos, é outro complicador. Além disso, o Brasil está ficando mais isolado dos outros países no tráfego internacional de passageiros. As restrições para brasileiros hoje são maiores do que praticamente para qualquer outro país devido ao descontrole da pandemia. Hoje, ninguém quer receber brasileiro. Esses três fatores são ruins neste momento e fazem com que a recuperação seja mais difícil. A solução para isso também é maior capacidade de atendimento, distanciamento social e ajuda econômica. Mas a sensação é a de que falta gestão. Todo mundo está lidando com a crise. Alguns países estão lidando melhor; outros não. O Brasil está no grupo que claramente sofre mais com a crise. Assim como uma empresa, um governo lida com a realidade e com a percepção. E, hoje, o País está sofrendo pelos dois. A gente sofre pela realidade, porque os números (de casos e mortes) estão muito ruins, mas a gente também sofre com a percepção de que existe uma politização do tema da saúde e um desalinhamento entre municípios, Estados e federação.

A crise da Petrobrás foi um dos fatores que desencadearam essa crise de confiança. Como está interferindo nos negócios?
Não ajuda. Quando você tem o que aconteceu na Petrobrás, embora isso já tenha acontecido em outros momentos, a forma como foi comunicada (a demissão do presidente Roberto Castello Branco) não ajuda. Isso não colabora para termos um dólar mais baixo. Agora, talvez estejamos sentindo o momento mais agudo do dólar. Se o Brasil conseguir acelerar a vacinação e passar uma mensagem mais alinhada entre os três Poderes, entre governos municipais, estaduais e federal, o nível de agressividade com que o mercado internacional está olhando para a gente pode diminuir.

A nova onda da pandemia muda a expectativa de recuperação do setor?
Provavelmente em 2023 estaremos transportando o mesmo nível de passageiros de 2019, mas o faturamento vai demorar mais. O passageiro corporativo, que paga mais pelo voo, vai demorar para voltar. Estamos usando uma https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpg que antes era menos utilizada e que vai substituir parte das viagens a trabalho. As empresas vão buscar reduzir seus custos, e é óbvio que uma reunião pela internet é mais barata do que uma viagem. Isso deve fazer com que o faturamento demore para voltar. Se será em 2024, 2025 ou 2026, é difícil precisar.

O ESTADO DE S. PAULO

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