Rota de colisão (Editorial)

O Poder Executivo e o Poder Judiciário estão novamente em rota de colisão. O ponto de discórdia envolve questões no campo do direito do trabalho, que já foram objeto de uma ampla reforma promovida em 2017, no governo de Michel Temer. Sob pretexto de simplificar a legislação trabalhista, a equipe do ministro Paulo Guedes colocou em consulta pública um decreto que abrange 31 textos legais que disciplinam, entre outros temas, normas sobre saúde e descanso semanal dos empregados aos domingos.

O secretário de Trabalho do Ministério da Economia, Bruno Dalcolmo, afirmou que o texto passou pela análise técnica das áreas jurídicas do Executivo e que ele não muda “um centímetro” a legislação trabalhista em vigor. Mas os magistrados trabalhistas dizem justamente o contrário. Eles lembraram que o decreto institui um Programa Permanente de Consolidação, Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas. Também afirmaram que, sob a alegação de desburocratizar os procedimentos de negociação entre patrões e empregados em matéria de descanso e saúde, o decreto suprime alguns direitos trabalhistas. Mas, como não interfere nos direitos patronais, o texto rompe o equilíbrio entre as partes que deve prevalecer nos conflitos coletivos do trabalho.

Segundo os juízes, o decreto introduz no direito do trabalho inovações que só poderiam ser impostas por lei ordinária, além de abrir brechas que permitem ao governo aumentar a lista de atividades com autorização permanente para o trabalho aos domingos. Em nota técnica enviada à Secretaria-Geral da Presidência da República, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) afirma que a iniciativa da área econômica do governo extravasa em larga escala o poder regulamentar do Poder Executivo em matéria de direito trabalhista. A nota foi endossada pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho e pela Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas.

O decreto proposto apresenta “um arcabouço jurídico inovador”, com princípios próprios e normas diferentes das previstas tanto na Constituição quanto nas leis ordinárias”, diz a Anamatra. O decreto também promove “alteração da lógica protetiva da legislação trabalhista, em manifesta violação ao processo legislativo”. E ainda recorre propositadamente a “expressões vagas e ambíguas, cuja abertura semântica revela natureza jurídica de princípio normativo, permitindo que o Poder Executivo Federal atue com excessiva discricionariedade na suposta regulamentação dos direitos trabalhistas”. Na conclusão, a nota lembra que “a ampliação indevida do poder regulamentar do Executivo será submetida a controle judicial”. Ou seja, se o decreto for editado, será questionado no Supremo Tribunal Federal (STF). Assim, em vez de estimular o crescimento da economia, a medida criará mais insegurança jurídica, desestimulando com isso a contratação de pessoal pelas empresas.

Em resposta, o secretário de Trabalho voltou a afirmar que a proposta de decreto não coloca em risco a saúde e a segurança dos trabalhadores, mas cometeu uma grave imprudência. Confessou que, para a área econômica do governo, a revisão das normas trabalhistas “não pode ser orientada apenas pela saúde e segurança do trabalho”, pois “a única maneira de ter risco zero à saúde e à segurança do trabalhador é não ter atividade produtiva nenhuma”.

As leis trabalhistas precisam ser modificadas no sentido indicado pela reforma de 2017, o que não se pode é atropelar as leis do País, necessariamente aprovadas pelo Legislativo, por atrabiliários decretos baixados pelo chefe do Poder Executivo.

O ESTADO DE S. PAULO

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