Remuneração muito desigual entre topo e a base pode gerar problemas para empresas

Mudanças na forma de remuneração de CEOs aumentam a discrepância de ganhos dentro das empresas e podem resultar em uma administração que se volta apenas para o curto prazo
Por Cláudio Marques e Naiara Bertão — Para o Prática ESG, de São Paulo

A desigualdade de remuneração não incomoda apenas quando há disparidades de salário entre pessoas de gênero ou raças diferentes que exercem as mesmas funções. Estudos mostram que a diferença grande entre os salários do C-Level e da base da pirâmide corporativa pode ter impacto negativo na sociedade e também nos negócios.

Um estudo de 2020 do think tank americano Economic Policy Institute (EPI) mostra, por exemplo, que de 1978 a 2020, o pagamento do CEO cresceu 1.322%, superando de longe o crescimento do mercado de ações da S&P (817%) e mais ainda em relação à remuneração de um trabalhador típico, cujo contracheque aumentou só 18% neste período, nos Estados Unidos. “Essa escalada da remuneração do CEO e da remuneração dos executivos em geral alimentou o crescimento das rendas dos grupos 1% e 0,1% mais ricos, deixando menos frutos do crescimento econômico para os trabalhadores comuns e aumentando a distância entre os que ganham muito bem e os 90% mais pobres”, comentam analistas no relatório.

“Essa desigualdade não se restringe aos EUA; é mundial e começou a tomar forma há cerca de 20 ou 30 anos”, comenta Alexandre Di Miceli, professor do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e cofundador da consultoria Virtuous Company. Ele explica que a guerra por talentos, a partir dos anos 1990, acirrou as mudanças com a aceitação maior do argumento de que é preciso pagar bem para não perder um talento para outra empresa. “Sempre houve disparidade, mas agora chegou a níveis estratosféricos”, diz Di Miceli, referindo-se à discrepância entre o topo da pirâmide salarial e o resto dos empregados.

O Brasil não escapa desse quadro, tanto na relação entre níveis mais altos da empresa e os demais, quanto entre as próprias diretorias de uma corporação. Levantamento feito com exclusividade para o Prática ESG pela plataforma de análise de dados Comdinheiro, com base nas informações públicas das 89 empresas de capital aberto que compõem o índice Ibovespa, mostra que a maior remuneração anual obtida em 2021 por um CEO foi R$ 59,03 milhões brutos, em uma companhia do setor financeiro. Nessa empresa, o menor ganho de um diretor foi R$ 2,10 milhões. Ou seja, uma diferença de 28 vezes. Já o CEO de uma siderúrgica recebeu R$ 55,14 milhões, e a menor remuneração na diretoria foi de R$ 11,31 milhões. Enquanto isso, o salário médio anual do trabalhador brasileiro, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é de cerca de R$ 33 mil.

De acordo com Filipe Ferreira, diretor de Negócios da Comdinheiro, esses ganhos de CEO e diretoria contemplam toda a remuneração do executivo, incluindo bônus, remuneração variável e bonificação de ações a valor de exercício, além do salário fixo. Ele chama a atenção para o fato de que nas estatais a diferença na diretoria é menor ou até inexistente, em alguns casos.

Um estudo, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), traz ainda outro ângulo da questão: a diferença de pagamentos para trabalhadores com níveis semelhantes de habilidades em diferentes empresas. “Os salários não são determinados apenas pelas habilidades dos trabalhadores, mas também por produtividade e políticas salariais das empresas”, destaca o relatório “O papel das empresas na desigualdade salarial”.

O levantamento aponta que as companhias respondem por parte considerável da desigualdade salarial geral. “Diferenças nos prêmios salariais entre as empresas, ou seja, depois de levar em conta as diferenças na composição da força de trabalho, representam cerca de um terço da desigualdade salarial global”, aponta o relatório.

A OCDE pondera que as diferenças salariais entre empresas não são necessariamente algo ruim, pois permitem que empresas de alta produtividade atraiam trabalhadores e expandam seus negócios oferecendo um alto contracheque. Mas alerta que as disparidades excessivas podem se refletir em barreiras à mobilidade, que prendem uma grande parte dos trabalhadores em empresas com baixos salários.

Uma tese discutida no exterior é de que as desigualdades – individuais e interempresariais – se reforçam e pioram o quadro geral. Alguém que já tende, naturalmente, a ter uma melhor colocação, seja por sua experiência profissional, por seus contatos, nacionalidade ou até por seu gênero e cor de pele, tende a ser contratado por empresas que pagam melhor. Essas companhias que pagam melhor, por sua vez, se alimentam de bons profissionais para gerar ainda mais lucro e repartir esse dinheiro entre os acionistas e funcionários. Enquanto isso, aos demais cabe um ambiente mais competitivo e com piores condições e menos segurança no trabalho.

Um dos tópicos que vêm sendo discutidos por especialistas, especialmente nos Estados Unidos, são as chamadas cláusulas de “non-compete” (não-concorrência), que impedem uma pessoa de exercer a mesma função em uma empresa concorrente por um tempo. Elas, argumentam alguns, limitam ainda mais a mobilidade e a possibilidade de usar a experiência acumulada para ganhar mais dinheiro.

Distorções – Di Miceli, da Virtuous, lembra que alguns estudos internacionais já apontam para uma certa relação entre a disparidade de remuneração do topo e da base com a menor motivação de funcionários. “Se a pessoa está em uma empresa em que sente que há alguma injustiça tende a perder a motivação.” Outra consequência pode ser a maior rotatividade e pior desempenho. “Há trabalhos mostrando que essa situação gera menos cooperação dentro das empresas, porque cria um ambiente mais competitivo entre as pessoas. Todo mundo quer aquela remuneração”, afirma Di Miceli.

Segundo o professor, na década de 1970, um alto executivo recebia um salário fixo e uma parte pequena em bônus, de alguns poucos salários, se batesse determinadas metas. Nos últimos anos, popularizaram-se os planos em que o executivo recebe o bônus em participação acionária na empresa. “É muito nova essa ideia de atrelar a remuneração da alta gestão de forma agressiva a ações e opções de ações. Quando a ação sobe, o sujeito fica multimilionário”, diz.

“Isso gera um incentivo perverso para se administrar não a empresa, mas expectativas de mercado, que é exatamente o caso da Americanas. Se a expectativa for elevada, a ação vai subir; uma ação é sempre associada a uma expectativa futura”, afirma, lembrando do caso recente da varejista brasileira que teve uma dívida de dezenas de bilhões de reais encoberta no balanço por anos e entrou com pedido de recuperação judicial. Na Americanas, o ganho do CEO era 400 vezes a média dos colaboradores, segundo o especialista em governança Renato Chaves.

Ele lembra também que esse modelo incentiva o pensamento – e a estratégia – de curto prazo, uma vez que é preciso um trabalho intenso em pouco tempo e que promete uma remuneração alta que “resolve a vida” de muitas pessoas. “Então, põe-se foco no curto prazo, entregar o número e o resto é resto”, reitera Di Miceli.

Ferreira, da Comdinheiro, aponta ainda que, no levantamento, das dez companhias que pagaram as maiores remunerações de 2021, sete delas tiveram redução do lucro líquido de 2021 para 2022. “Se a ideia é remunerar para gerar mais lucro no ano seguinte, aparentemente não funcionou. E se pergunta: Estamos fazendo do jeito certo? Não será melhor uma remuneração mirando o longo prazo?”, aponta. No limite, conjectura, poderia até haver menos incentivos variáveis para o executivo pensar em estratégias de anos e não em tiros curtos em busca do resultado em 12 meses.

“Se eu estou em uma sociedade que busca igualdade, como o salário traduz as relações nas empresas, na prática? Não é só questão de priorizar ou não o acionista. Um super salário de um CEO, com mentalidade de resultados a qualquer preço não faz mais sentido”, diz Rodrigo Santini, diretor executivo do Sistema B. Para ele, o grande desafio hoje das empresas é como passar da lente de shareholder para stakeholder, ou seja, considerar seu impacto no micro e no macro e nas partes relacionadas. “É responsabilidade da empresa também refletir o que acontece na sociedade; servir de exemplos e abarcar as questões sociais da porta para dentro”.

https://valor.globo.com/carreira/esg/noticia/2023/02/15/remuneracao-muito-desigual-entre-topo-e-a-base-pode-gerar-problemas-para-empresas.ghtml

Compartilhe