Combinar a adoção de medidas sociais com sustentabilidade da dívida é factível, segundo a economista-chefe do Credit Suisse no Brasil, Solange Srour. A aprovação da PEC Emergencial – que proibiria, por exemplo, reajustes salariais de servidores caso as dívidas do governo superassem os gastos obrigatórios – poderia abrir espaço para se investir em programas sociais, segundo Solange. O entrave, acrescenta ela, é político.
“O governo precisa ser o grande formulador e defensor dessas duas coisas (teto dos gastos e programas sociais). Não vai sair nenhuma revisão de gasto social ou corte de despesa obrigatória se a liderança não for do Executivo”, diz. Outra dificuldade, de acordo com a economista, é que o tempo está correndo e o País já deveria estar com essas medidas encaminhadas. “O auxílio emergencial acaba em dezembro e o Brasil está atrasado nessa discussão, que já era para ter acontecido.”
Ainda segundo a economista, a redução da desigualdade social no pós-covid tem de ser feita com gastos públicos mais bem direcionados, e não via aumento de impostos. “Temos de fazer uma revisão nos gastos e aí, de novo, a reforma administrativa é uma reforma que traz justiça social.”
● Como avalia a trajetória da dívida brasileira?
Houve um aumento de quase 20 pontos porcentuais na relação dívida/PIB em um ano. Estimamos que a dívida fique próxima de 96,5% do PIB neste ano. É um nível muito elevado para o Brasil rolar. Durante a crise, a gente acabou encurtando o prazo médio da dívida. Então, há uma necessidade de rolagem elevada durante todo o ano que vem e o mais importante, além do tamanho da dívida e do fato de a gente precisar rolar no curto prazo, é a trajetória dos gastos. Essa trajetória permitiria aos investidores ter confiança de que a dívida é sustentável. Isso porque o país pode ter um nível de dívida muito elevado – e tem vários países desenvolvidos com um nível muito mais elevado do que o do Brasil -, mas o que importa é a trajetória da dívida. Essa trajetória é fundamentada nos gastos públicos e, nesse caso, o Brasil está realmente em uma situação muito difícil. Estamos discutindo a manutenção ou não do teto de gastos (lei que limita as despesas federais ao valor do ano anterior, corrigido pela inflação), e isso vai definir o que acontecerá com a dívida/PIB daqui para frente.
● A sra. comentou que, em 2021, será preciso rolar um grande volume de dívida. Há risco de o governo não conseguir?
Risco existe. Na verdade, o Tesouro teve dificuldade de rolar a dívida alguns meses atrás, porque a dúvida sobre a sustentabilidade fiscal acabou gerando prêmios altos, prêmios demandados pelos investidores, principalmente na dívida de longo prazo. Por isso, o Tesouro começou a rolar a dívida de curto prazo. Houve um momento em que os investidores começaram a exigir também prêmios maiores na dívida de curto prazo. Agora, no fim do ano, está um pouquinho mais calmo por dois fatores. Primeiro, porque os vencimentos (de dívida) são menores e, depois, porque o cenário internacional melhorou bastante. O apetite ao risco aumentou depois da eleição do Joe Biden e com esse surgimento de vacinas.Deu uma aliviada, mas, a cada leilão, o mercado fica tenso, e esse risco vai voltar no primeiro trimestre, quando temos um volume elevado de vencimentos. Fora isso, o mercado pode ficar estressado porque, além dos vencimentos elevados, tem a dúvida se o Brasil vai aprovar a PEC Emergencial ou não e se o governo vai estender ou não o auxílio emergencial.
● Quando a sra. diz que há risco, seria risco de não renovar ou de renovar em condições ruins?
Renovar em condições piores, porque o mercado vai exigir um prêmio maior e o Tesouro vai precisar aceitar. É muito difícil não conseguir rolar. É uma questão de custo, que vai ser mais elevado e o prazo, mais curto. Porque, quando o risco é maior, os investidores querem rolar no curto prazo, porque não tem uma visibilidade de longo prazo. O fato de o Tesouro acabar sendo levado a rolar os títulos de curto prazo traz um risco grande também, porque acaba tendo de rolar mais vezes ao longo do tempo.
● Desde que o governo aumentou os gastos para reduzir os efeitos da pandemia, há uma pressão sobre o teto dos gastos. Como conciliar o teto com a necessidade de resolver os problemas sociais?
O problema é que o Brasil tem uma série de gastos obrigatórios que crescem a uma taxa muito acima do PIB. O teto limitou esse crescimento das despesas à inflação. Antes de ser implementado, a taxa real de crescimento das despesas era de 6% ao ano, bem acima do crescimento do PIB. Com essa limitação do teto, as despesas discricionárias e os programas sociais tiveram de entrar no teto. Mas a ideia toda, na construção do teto, era que o Brasil iria aprovar uma série de reformas que diminuiria a taxa de crescimento desses gastos, abrindo espaço para investimentos e gastos sociais. O problema é que a gente só fez uma pequena parte das reformas e, durante essa crise, acabou gastando toda economia que a reforma da Previdência traria em dez anos. A crise da covid trouxe uma parada súbita da economia, muitas pessoas ficaram deslocadas do mercado de trabalho e foi necessário um programa de sustentação da renda. Agora, a economia está voltando a funcionar. Com essa volta, tem pessoas retornando ao mercado de trabalho. Então, a gente tem de transitar de um programa de auxílio à renda, que foi necessário, para um programa que vai lidar com o aumento da desigualdade social derivada dessa crise. Mas, para lidar com isso e ao mesmo tempo manter a regra fiscal, ter credibilidade de que os gastos não vão crescer acima do PIB, o Brasil precisa fazer alguma reforma de curto prazo. Precisa fazer cortes de gastos obrigatórios que permitam aumentar o gasto social. É essa a discussão da PEC Emergencial. A PEC Emergencial abriria espaço dentro do teto através de gatilhos e de cortes de despesas obrigatórias. Isso sem contar com uma revisão dos programas existentes – Bolsa Família, Seguro Defeso, Abono Salarial, uma série de programas que podem ser reformulados para lidarmos com a desigualdade sem aumentar o gasto.
● É possível fazer isso já no ano que vem? Cumprir o teto sem gerar uma deterioração social maior?
É possível. É uma questão política. Primeiro, o governo precisa ser o grande formulador e defensor dessas duas coisas. Não vai sair nenhuma revisão de gasto social ou corte de despesa obrigatória se a liderança não for do Executivo. Os últimos meses foram bastante tumultuados, porque houve vazamento de vários programas, o que acabou gerando turbulência no meio político. A gente precisa ter essa liderança e a formulação de uma base de sustentação do governo no Congresso para aprovar essas medidas. Fora isso, temos de lidar com o tempo. O auxílio emergencial acaba em dezembro e o Brasil está atrasado nessa discussão, que já era para ter acontecido. Já era também para estarmos com o programa Renda Brasil (programa que chegou a ser anunciado pelo governo para substituir o Bolsa Família, com um valor médio maior) aprovado e também já ter aprovado a PEC Emergencial. Isso não aconteceu.
● Antes de criar uma base no Congresso, há dificuldade para se ter consenso no próprio governo. Ainda assim, dá para confiar que essa agenda vai avançar?
O Brasil sempre avança nas agendas mais reformistas no momento de crise. No momento em que a economia real passa a sofrer impacto decorrente dessa incerteza, o meio político começa a ficar mais pró-reforma. A popularidade não só do governo, mas a vida de qualquer congressistas, seu futuro político, vai depender da economia. Então, se a gente não aprovar nada até o começo do ano que vem e, ao mesmo tempo, essa pressão por gasto social continuar muito elevada, isso vai gerar um impacto na economia relevante. Aí vai se criar um consenso. Infelizmente, algumas vezes a gente precisa gerar esse impacto, o que é negativo para o Brasil, porque, se a taxa de juros e a inflação sobem, se o Banco Central acaba tendo de subir a Selic, isso tem consequências negativas para a economia e para o próprio meio político. Era melhor se antecipar a esse processo, mas muitas vezes não é assim que funciona. Se a gente não avançar em nada, muito provavelmente os preços dos ativos vão se deteriorar, o que terá impacto na economia real.
● Fora a PEC Emergencial, o que mais precisa ser feito?
A PEC Emergencial não melhora a situação fiscal. Ela é apenas uma ponte que o Brasil pode construir até que sejam aprovadas reformas que realmente mexam nos gastos obrigatórios, entre elas a administrativa. A maioria dos economistas e até dos políticos entende que é muito difícil aprovar uma reforma administrativa ampla. Isso vai ser difícil de se fazer no fim de mandato de um governo, principalmente após uma recessão tão forte. Então, a PEC Emergencial surge como uma ideia de que vamos, pelo menos por dois anos, controlar o gasto obrigatório, principalmente os relacionados à reforma administrativa. A PEC Emergencial é o mínimo que o País pode fazer enquanto não faz reformas mais estruturais. Depois, a gente precisa avançar mesmo na reforma administrativa. O gasto com pessoal é o segundo maior depois do da Previdência e, portanto, a reforma administrativa tem de ter algum impacto no curto prazo. Não estou dizendo acabar com a estabilidade, mas fazer uma mudança importante na estrutura salarial. Hoje os salários evoluem ao longo do tempo. O Brasil gasta bastante, por exemplo, com educação, e nós não temos bons índices na área. Precisamos fazer uma revisão estrutural da qualidade dos gastos em vários setores. Estados e municípios também têm um problema crônico de gastos e acabam tendo de, toda hora, ser salvos pelo governo federal. Também precisamos lidar com isso.
● Aumentar imposto pode ajudar a resolver a crise fiscal? Organismos multilaterais têm apontado essa alternativa para reduzir a desigualdade e aumentar a arrecadação.
Acho que o sistema brasileiro de tributação é regressivo (ou seja, arrecada mais, proporcionalmente, de quem ganha menos). É possível avançar na progressividade, principalmente quando a gente pega o gasto tributário. O gasto tributário são os incentivos que o governo dá e que acabam gerando redução de arrecadação: abatimento do gasto com saúde e educação do Imposto de Renda, por exemplo. Isso pode ser alterado e trazer maior progressividade. O problema é confundir progressividade com aumento de carga tributária, porque o Brasil não tem uma carga baixa. É muito difícil a gente aumentar a carga tributária sem gerar uma perda de produto potencial. Se o Brasil já tem uma carga elevada, a questão da redução da desigualdade social tem de ser feita via gasto público, que tem de ser melhor direcionado. Temos de fazer uma revisão nos gastos e aí, de novo, a reforma administrativa é uma reforma que traz justiça social. Existe uma disparidade enorme entre os rendimentos dos funcionários públicos, principalmente no governo federal, e os do setor privado. A maneira mais eficiente para lidar com a desigualdade é através do gasto. O Bolsa Família é o programa mais eficiente e reconhecido mundialmente por ter diminuído a desigualdade, mas ele pode ser melhorado. Vamos olhar os gastos sociais e redesenhá-los, focar nos mais necessitados, nas crianças, na educação dos mais desfavorecidos.
● No ano passado, a trajetória da dívida começou a se acomodar. O governo errou neste ano no volume de incentivos fiscais adotados para contornar a crise da covid?
Os gastos em torno de 8% do PIB para lidar com a covid foram muito bem-vindos. O Brasil poderia ter tido uma recessão de 10%, mas vai ter uma de 4%. O gasto foi necessário e importante, sustentou não só a renda do trabalhador, mas também o emprego. Não houve exagero. Esse gasto não colocaria o Brasil em uma situação de se discutir a sustentabilidade da dívida, o problema é que a gente está saindo da crise e discutindo que agora não vamos mais ter a regra de teto, que agora a gente pode furar a regra e que não vai avançar em outras reformas importantes. É por isso que o Brasil se destaca como um país que não pode mais estender o auxílio no ano que vem.Tem vários países estendendo as medidas do covid para o começo de 2021, porque o Brasil não pode fazer isso? Porque está discutindo acabar com uma regra fiscal. Quando se discute isso, perde toda a credibilidade. Não temos espaço fiscal porque os nossos gastos têm um problema crônico que não foi resolvido no pré-covid.
O ESTADO DE S. PAULO