Primazia (Ana Carla Abrão)

O Brasil cansa. Cansa muito. Duas notícias da última semana dão o tom das nossas dificuldades e de quão arraigados estão conceitos injustos, sempre travestidos de direitos. A primeira se refere a um suposto pleito por parte dos promotores de Justiça para que fossem considerados prioritariamente na fila de vacinação contra a covid-19. A segunda trata de uma decisão em caráter liminar da ministra Rosa Weber, que afasta punições previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para o Estado do Espírito Santo.

A primeira, embora conste em ata de uma reunião do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), foi desmentida assim que começaram as reações de indignação nas redes sociais. Defendido sob o argumento de que os nobres promotores “trabalham com audiências, atendimento ao público e outras atividades em que o contato social é extremamente grande e faz parte do nosso dia a dia”, o pleito de priorização na fila de vacinação contra a covid-19 buscou logo afastar a pecha de egoísmo.

De fato, não se trata disso. Afinal, para quem não sofre com o medo do desemprego e recebe salários acima de R$ 30 mil mensais (engordados por auxílios saúde, moradia, alimentação, combustível e férias de 60 dias), cogitar ter a primazia sobre milhões de trabalhadores que se amontoam em casas minúsculas ou no transporte público lotado para chegarem ao trabalho, ou mesmo de tantos outros que, em serviços considerados essenciais, estiveram e estão se arriscando diariamente, não é mesmo egoísmo. É falta de noção e completo descolamento da realidade brasileira. Além, claro, de algum sentimento de superioridade.

A segunda, não menos identificada com essa divisão da nossa sociedade em castas, se refere ao tratamento diferenciado que o Judiciário sempre aplica a si mesmo, em particular em tudo que se refere a seus salários, benefícios e privilégios. A LRF, no parágrafo 3º do artigo 23, é cristalina em definir as penalidades caso a despesa total com pessoal ultrapasse, no caso dos Estados, os 60% da Receita Corrente Líquida (RCL). Esse limite é distribuído entre Executivo (49%), Legislativo (3%), Judiciário (6%) e Ministério Público (2%) e cabe ao parlamento local, diretamente ou por meio dos tribunais de contas, a fiscalização do Executivo. O Poder Judiciário e o Ministério Público são fiscalizados pelos próprios órgãos internos de controle e pelos tribunais de contas.

Extrapolado o limite total – e não alcançada a redução e consequente reenquadramento em dois quadrimestres – estão vedadas transferências voluntárias, garantias, diretas ou indiretas, de outro ente e contratações de operações de crédito, “ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal”.

No caso do Espírito Santo, foi o Judiciário quem extrapolou o seu. Um dos únicos Estados a receber nota A do Tesouro Nacional em 2020, graças a um trabalho exemplar de reequilíbrio fiscal executado a partir de 2015, no governo Paulo Hartung, o Estado se mantém como destaque nos indicadores fiscais. Dessa forma, parece injusto penalizá-lo – e portanto os seus cidadãos – pelo não cumprimento da lei por parte de um dos poderes, ironicamente, o Judiciário. E de fato é! Historicamente, é o Executivo (leia-se educação, saúde, segurança e investimentos) quem tem que reduzir seus custos para dar conta do custo crescente dos poderes autônomos e se manter dentro dos limites globais. Mas o que surpreende na decisão da ministra do Supremo é menos a isenção da penalidade e mais o fato dela relevar o flagrante desrespeito à lei pelo Judiciário. Aprovada em maio de 2000 para garantir disciplina fiscal principalmente por parte dos entes subnacionais, devastados pela irresponsabilidade predominante nos anos precedentes, a tem se visto constantemente a mercê de ataques repetidos pelo Judiciário. Em particular nos temas voltados a salários de servidores, principalmente os seus que em muito e há muito ultrapassam os limites definidos em lei.

Cansa, portanto, constatar que continuamos perdidos, com nossas instituições voltadas para si e não para o País. Deveríamos estar todos cobrando a elaboração de um plano de retomada econômica; a articulação para a aprovação de reformas imprescindíveis e urgentes como a administrativa e a tributária; o estabelecimento das condições para viabilizar uma rede de proteção social mais ampla; a elaboração de políticas públicas de combate à violência, de forma a evitar que nossas crianças pobres continuem sendo mortas nas portas das suas casas; a criação de condições seguras de retorno das nossas crianças e jovens à escola; o desenho de um plano de vacinação em massa que nos permita voltar a trabalhar poupando vidas e reduzindo os custos econômicos da atual tragédia. Mas não, continuamos assistindo ao de sempre: à primazia do individual sobre o coletivo por parte daqueles que deveriam zelar por todos e não só por si.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

O ESTADO DE S. PAULO

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