O livro do tampão (Pedro Fernando Nery)

Premiada com o Leão do Festival Internacional de Criatividade de Cannes em 2019, a campanha “O livro do tampão” provoca a discussão sobre tributação e gênero. O livro, que ficou à venda, é um falso livro: na verdade, uma caixa de tampões disfarçada. É que, como livro, pagava-se menos tributo. Na Alemanha das idealizadoras, esses produtos femininos eram considerados supérfluos, sujeitos a uma alíquota maior do que produtos como pinturas ou trufas, considerados mais essenciais. Para além do exemplo emblemático, um debate se coloca: no sistema tributário, mulheres pagam mais?

À primeira vista, a resposta intuitiva parece ser sim: afinal, nosso sistema tributário é regressivo (exige mais dos mais pobres do que dos mais ricos) e mulheres têm participação maior na pobreza do que os homens (pior acesso ao mercado de trabalho formal, frequentemente responsáveis pelos filhos).

Um grupo de estudos voltado para a questão – Tributação e gênero – foi montado na Escola de Direito de São Paulo da FGV e tem publicado sobre o assunto (com participação de procuradoras da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). Em nota recente (Reforma tributária e desigualdade de gênero: contextualização e propostas), ressaltam a importância de reformar o sistema para onerar menos o consumo e onerar mais a renda, tornando-o mais progressivo.

Mas há algumas qualificações a serem feitas a esse trabalho, assumidamente aberto e inicial. As principais análises concentram-se no Imposto de Renda, o que acaba sendo um limitador em um País como o nosso: segundo a Receita Federal, 13 milhões dos declarantes do Imposto de Renda são mulheres. Mas a população adulta feminina ultrapassa 70 milhões, a maioria sem renda suficiente para declarar IR.

De fato, os dados mostram que homens são mais beneficiados pelas isenções no Imposto de Renda (possivelmente, pela maior parcela entre aqueles isentos de recolher IR sobre lucros e dividendos). A parcela isenta é de 33% da renda deles, 27% no caso delas. Mas, no fim das contas, o porcentual de imposto pago é virtualmente igual: 6% para ambos, quando são consideradas as deduções. Assim, a disparidade de gênero mais relevante no sistema tributário parece não estar entre os declarantes do IR, mas entre esses e os que não declaram.

E, para esse grupo, as autoras entendem que a reforma tributária da PEC 45 “reforça a regressividade do sistema atual”. Em entrevista ao Jota na semana passada, a professora Tathiane Piscitelli, da FGV, foi mais taxativa: “Vai piorar para a população de baixa renda. A mulher negra e chefe de família. É para ela que vai piorar especificamente”.

A evidência disponível parece questionar essas afirmações. O estudo de Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, do Ipea, projeta que a PEC reduz o peso dos impostos sobre a renda dos mais pobres e aumenta na dos mais ricos. Para os 10% mais pobres, a queda do peso seria de cerca de 10%. Para os 10% mais ricos, aumento em magnitude semelhante.

Uma característica da PEC ajuda a entender o debate: a unificação das alíquotas incidentes sobre bens e serviços. Para Tathiane e coautoras, a unificação seria negativa por encarecer os produtos da cesta básica, hoje desonerados. A PEC prevê devolução de impostos aos mais pobres, mas o mecanismo seria “obscuro”. Já o cálculo de Gobetti e Orair contempla que a unificação, ao reduzir os encargos de bens e elevar os de serviços, atinge mais o consumo dos mais ricos – que gastam mais de sua renda com serviços (ainda assim, os pesquisadores ressaltam a importância do bom desenho do mecanismo de devolução).

Portanto, é difícil concordar com as autoras quando afirmam que o aumento da carga sobre serviços reforça a regressividade do sistema, por dificultar o acesso à saúde e educação. Bráulio Borges, do Ibre, com base na última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, mostra bem como são os mais ricos que destinam fatias maiores de suas rendas para estes serviços privados.

Ademais, sendo a PEC 45 apenas uma fatia da reforma, fundamentalmente voltada ao crescimento econômico e não à redistribuição, os efeitos positivos sobre o ganho de renda dos mais pobres também devem ser contemplados. Por algumas estimativas, seriam bastante elevados.

Por fim, uma proposta interessante de Tathiane e coautoras é a dedução do IR de pessoas jurídicas que contratem mulheres chefes de família ou negras. Talvez instrumento de maior impacto seja o de fazer a diferenciação nos próprios encargos sobre a folha. Dado os elevados efeitos positivos para a sociedade da inserção dessas mulheres no mercado de trabalho formal, uma desoneração orientada para gênero merece ser discutida.

Do “Livro do tampão” à iniciativa da FGV, a lente de gênero parece promissora para analisar um tema normalmente árido e pouco capaz de gerar o engajamento que deveria na sociedade.

*DOUTOR EM ECONOMIA

O ESTADO DE S. PAULO

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