Desde os primórdios, a humanidade se valeu de narrativas como forma de disseminação do conhecimento e preservação das tradições e valores. Nem sempre, entretanto, elas traduziam a verdade, por ato consciente ou não do narrador.
Como ensina o jurista Ives Gandra, tributo é norma de rejeição social, o que, combinado com a exigência de conhecimentos especializados sobre a matéria, converte a tributação num território pródigo para construção de narrativas, que podem tão somente traduzir vieses ideológicos ou interesses específicos, legítimos ou não, subsistentes ou não.
No Brasil, o debate tributário contemporâneo tem conferido muita atenção às denominadas renúncias fiscais.
Renúncia, no campo jurídico, corresponde ao “abandono ou desistência voluntária de um direito pelo seu não exercício, pelo não cumprimento de exigências para sua conservação ou por declaração expressa” (Dicionário da Língua Portuguesa, Academia de Ciências de Lisboa). Não há, pois, renúncia diante de uma obrigação.
Renúncias fiscais se inscrevem no âmbito da extrafiscalidade, que é tão universal e atemporal quanto a própria história dos tributos. O propósito é utilizar tributos para estimular iniciativas ou robustecer condutas, coexistindo com a função arrecadatória. Esse exercício demanda parcimônia, sujeição ao interesse público e aferição de resultados.
No domínio das desonerações tributárias, o direito pátrio reserva a denominação de imunidade para as desonerações que se deduzem do texto constitucional. Imunidades, pois, encerram a ideia de obrigatoriedade, o que afasta de pronto a possibilidade de renúncia.
Há imunidades que são irrestritas, como a desoneração do ICMS e do IPI nas exportações para o exterior; outras podem ser disciplinadas por legislação infraconstitucional, como o limite de faturamento para a concessão de tratamento privilegiado e simplificado para as micro e pequenas empresas, o universo dos produtos desonerados na Zona Franca de Manaus, os requisitos para fruição da imunidade das entidades de assistência social.
Em ambos os casos, todavia, inexiste a possibilidade de deixar de dar curso ao mandamento constitucional. Caso o legislador não positivasse as imunidades sujeitas a restrições por lei complementar, daria pretexto ao ingresso de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão.
Jamais se aventou a possibilidade de apurar a desoneração, nas exportações, do ICMS e do IPI como renúncia, mas, não raro, se pretende qualificar como renúncias as imunidades sujeitas a disciplinamento por legislação infraconstitucional, o que constitui erro palmar.
Pode-se, por exemplo, discutir o limite de faturamento do Simples, mas jamais dispensar tratamento privilegiado e simplificado para as micro e pequenas empresas. Em outra perspectiva, é bom lembrar que a inexistência do Simples é a certeza de uma colossal informalidade, que pode recepcionar práticas perigosas, porquanto se converteria em atividade à margem da sociedade.
É certo que renúncias fiscais – não imunidades – devem ser submetidas a avaliações. Quando ineficazes, devem ser revistas por lei, conforme prescrição constitucional, observada a limitação imposta pelo art. 178 do Código Tributário
Nacional, quanto às isenções concedidas por prazo certo e sob condições.
Eliminar uma renúncia fiscal não implica a constituição de equivalente montante de receitas. Pode, simplesmente, eliminar a atividade. Assim, alcança-se o pior dos mundos: não há renúncia nem receita. Cada situação, portanto, deve ser submetida à avaliação específica, sem a pretensão de generalizar.
Renúncia fiscal pode, também, estar associada a políticas sociais, a exemplo da isenção de produtos da cesta básica. A supressão dessa desoneração, mediante adoção de alíquota única na tributação do consumo, como tem sido aventado, é uma hipótese extrema de regressividade, afrontando, como observou o tributarista Edvaldo Brito, o celebrado princípio constitucional da capacidade contributiva.
CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)
O ESTADO DE S. PAULO