Justiça nega pedidos para classificar covid-19 como acidente de trabalho

A Justiça tem negado pedidos para classificar a covid-19 como doença ocupacional. Nas primeiras decisões sobre o tema, os juízes destacam a falta de provas do contágio no ambiente de trabalho e de determinação legal para o enquadramento. Em geral, só têm concedido o pedido para funcionários da saúde que atuam na linha de frente de combate ao coronavírus.

A discussão é importante porque a classificação da covid-19 como doença do trabalho gera estabilidade de um ano para o trabalhador. Além disso, ele pode obter na Justiça o direito a indenizações por danos materiais e morais. Em pelo menos 9,4 mil ações trabalhistas, segundo levantamento do escritório Lee, Brock e Camargo Advogados, a covid-19 é citada. E em parte delas, cerca de 2,1 mil, verificou-se também, além da doença, o termo “acidente de trabalho”. O setor industrial foi o mais demandado nesses processos, segundo Ricardo Freitas Silveira, responsável pela área de inteligência artificial do escritório. “Isso é explicado porque a indústria foi o segmento que menos teve atividade interrompida. Os escritórios, por exemplo, conseguem manter o isolamento”, afirma.

O segundo setor que mais aparece nas ações é o de transporte e armazenagem. “Quanto mais a atividade envolve contato entre trabalhadores, maior a ocorrência de covid-19 como acidente de trabalho”, diz o advogado. A maioria das ações ainda não foi analisada. Mas entre os julgados, as empresas perderam em 73% dos casos em que a covid-19 é citada. Não é possível detalhar se a doença estava no pedido principal ou no contexto dos fatos, de acordo com Silveira. Em um dos casos analisados, o juiz Thomaz Moreira Werneck, da 36ª Vara do Trabalho de São Paulo, negou pedido de liminar a um funcionário que trabalhava na limpeza do Metrô, por meio de uma empresa terceirizada. O trabalhador, que foi demitido, pedia suspensão do aviso prévio e estabilidade provisória por supostamente ter contraído a doença no ambiente de trabalho (processo nº 1000960-48.2020.5.02.0036).

Na decisão, o juiz destaca que a Portaria nº 2309, de 2020, do Ministério da Saúde, que incluiu a covid-19 na lista de doenças relacionadas ao trabalho, foi posteriormente revogada por outra portaria, a de nº 2345. Ele acrescenta que poderia ser aplicado ao caso o artigo 20, parágrafo 1º, da Lei nº 8213, de 1991, que lista o que não pode ser considerado como acidente de trabalho, entre elas doenças endêmicas. “O contágio por covid-19 foi definido pela OMS como pandemia, ou seja, de alcance mundial e de efeitos muito mais gravosos do que aquelas doenças endêmicas desenvolvidas em uma determinada região”, diz o juiz. De acordo com ele, “o enquadramento do contágio por covid-19 como doença ocupacional não decorre de nexo causal presumido”. E acrescenta: “O seu reconhecimento como acidente de trabalho demanda a análise ampla das medidas tomadas pelo empregador para preservar a saúde de seus empregados.” Para o magistrado, a contaminação pode ocorrer em vários outros locais, “na residência, estabelecimentos comerciais, eventuais atividades de lazer, deslocamentos para outros lugares quaisquer”.

Uma funcionária de uma clínica médica também teve seu pedido negado para que fosse emitido um Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT) para especificar que contraiu covid-19. O pedido foi analisado pelo juiz Rodrigo Acuio, da 2ª Vara do Trabalho de Diadema (SP). Na sentença, o magistrado diz que, apesar de a trabalhadora alegar no processo que contraiu a covid-19 no ambiente de trabalho, ficou comprovado nos autos que ela teve contato direto com seu sogro, que morreu em decorrência da doença. Ele afirma também que o contágio ocorreu após o afastamento, por 14 dias, do ambiente de trabalho – devido à morte do sogro e estado gripal (processo nº 1000372-42.2020.5.02.0262).

Uma auxiliar administrativa de um hospital também não conseguiu o reconhecimento de covid-19 como acidente de trabalho ou doença ocupacional. Ela alega ter sido infectada por estar na linha de frente do atendimento de pessoas contaminadas pelo vírus (processo nº 1000899-41.2020.5.02.0311). Na decisão, o juiz da 1ª Vara do Trabalho de Guarulhos (SP), Elmar Troti Jr, destaca que o contágio vem atingindo a população em escala mundial de forma vertiginosa e, apesar de a empregada trabalhar em um hospital, atuava no setor administrativo e não apresentou nenhuma incapacidade no retorno. “Não há como responsabilizar civilmente a reclamada por contaminação desta doença pandêmica”, afirma na sentença. Já duas filhas de uma enfermeira que trabalhou na linha de frente em Belém e acabou morrendo em decorrência da doença conseguiram indenização por danos morais no valor de R$ 75 mil para cada uma. No caso, a juíza Erika Moreira Bechara, da 16ª Vara do Trabalho de Belém, entendeu que a doença foi contraída no ambiente de trabalho. A juíza afirma, na decisão, que ficou comprovado que a enfermeira era do grupo de risco, por ser hipertensa e diabética, e continuou trabalhando normalmente na emergência do hospital (processo nº 0000462- 79.2020.5.08.0010).

“A probabilidade de ter a falecida contraído o vírus fora do ambiente de trabalho é mínima se comparado com o risco a que se expunha diariamente, ao cuidar de pacientes portadores da covid-19”, diz. O advogado Marcelo Bessa, sócio do Ávila de Bessa Advocacia e ex-juiz do trabalho, considera que o Supremo Tribunal Federal (STF) já sinalizou que a covid-19 pode ser considerada doença ocupacional. Em abril, julgou pontos da Medida Provisória nº 927, de 2020, e anulou o artigo que descartava o enquadramento. A decisão, acrescenta, sinaliza que seria encargo do empregador comprovar que a covid-19 não foi adquirida no trabalho, invertendo o ônus da prova. Para ele, a doença pode ser considerada ocupacional porque o empregado passa a maior parte do tempo no trabalho. “Só a vacina resolve isso. Do ponto de vista econômico e trabalhista, é importante. A vacina é o principal EPI [Equipamento de Proteção Individual].”

VALOR ECONÔMICO

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