Temos acompanhado, em longas sessões da CPI da Covid, depoimentos de servidores públicos do Ministério da Saúde. São servidores estatutários, ou seja, entraram no serviço público por meio de concurso e, após cumprido o período (atualmente) de três anos de estágio probatório, adquiriram a estabilidade funcional prevista no Regime Jurídico Único.
Pelo Artigo 41 da Constituição Federal, servidores estatutários só perderão seus cargos 1) em virtude de sentença judicial transitada em julgado; 2) mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; 3) mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.
Isso não é muito diferente do que há no restante do mundo. Afinal, a estabilidade no serviço público tem sua função e seu valor. Cabe à burocracia garantir a continuidade das políticas e ações de Estado, protegendo-as de interrupções ou substituições voluntariosas que as benéficas alternâncias de poder poderiam gerar. Uma burocracia estável, escolhida por critérios impessoais e técnicos, bem capacitada, corretamente incentivada e, acima de tudo, independente e dotada de espírito público, garante que o público seja colocado acima do privado e que as políticas públicas sejam voltadas ao cidadão, independentemente da coloração partidária dos seus mandatários da vez.
No Brasil, a diferença está na amplitude da estabilidade, que aqui abrange todos os servidores públicos, inclusive os que exercem funções muito além daquelas que a justificariam. Além disso, dada a atual captura dos processos disciplinares, embora a Constituição preveja sua demissão, servidores concursados se tornaram quase que indemissíveis, pois os pré-requisitos legais para isso dificilmente estarão formalmente presentes. Menos pela ocorrência de faltas e mais pela blindagem criada pelos próprios servidores. Ou seja, não é a estabilidade o nosso problema. Como também não é ela a nossa panaceia.
O tema voltou à tona com a PEC 32/2020, da reforma administrativa. No projeto, o governo propõe a criação de novos vínculos funcionais, restringindo a estabilidade apenas às carreiras de Estado – ainda a serem definidas. Ao colocar o carro à frente dos bois, a proposta gerou polêmica. Afinal, discutir estabilidade em um ambiente em que, só em nível federal, mais de 300 carreiras se acotovelam querendo um lugar na frente da fila de importância (equivocadamente confundida com estabilidade), é receita para não avançar.
Mais: discutir estabilidade quando o corporativismo é patrocinado pelo governo e em ambiente político e moral tão esgarçado é garantia de retrocesso. Tanto que emoção e polarização turbinaram a discussão com os recentes depoimentos dos servidores na CPI. Numa semana, a estabilidade foi a vedete que brilhou nas denúncias de irregularidades na importação de vacinas. Na seguinte, a mesma estabilidade foi vinculada à inação e ao baixo comprometimento com resultados.
Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar. A estabilidade não é garantia de honestidade, de independência ou de competência e coragem por parte de servidores públicos. Assim como não pode ser total e unicamente responsabilizada pela inação, falta de uma correta atribuição de funções e responsabilidades e pela acomodação.
Corrupção, desvios, paralisia ou atendimento a demandas eleitoreiras ou negacionistas partindo de uma posição pública não escolhe a estabilidade funcional ou a falta dela como morada. Pelo contrário, o que garante uma burocracia competente, comprometida e independente é um modelo funcional que atraia pessoas com espírito público e competências corretas, as valorize e dê as condições adequadas de trabalho – dentre elas, a independência que, em alguns poucos casos, a estabilidade reforça.
Um modelo que também cobre e premie pelo trabalho correto e competente que cada um faz. Mas que seja também um modelo que não tolere e puna – inclusive com a demissão – aqueles que se utilizam do cargo público com leniência ou, pior, para beneficiar a si ou aos seus. A estabilidade funcional deve ser parte desse modelo, mas ela por si só não garante seu sucesso. Menos ainda quando vem acompanhada de falta de transparência, de corporativismo e de blindagem.
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA
O ESTADO DE S. PAULO