Entre o desemprego e a fantasia (Editorial)

Na Ilha da Fantasia onde vive o ministro Paulo Guedes falta lugar para os 14,1 milhões de desempregados do terceiro trimestre, número registrado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Podemos terminar o ano perdendo zero empregos”, disse o ministro na quinta-feira, um dia antes de sair o novo balanço trimestral do mercado de trabalho. Ele estava comemorando a abertura de 349.989 vagas formais em outubro, registradas no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Parte desses empregos é apenas sazonal. Além disso, os números acumulados em 2020 ainda eram negativos, com 171.139 postos fechados – e os da Pnad Contínua eram muito mais feios.

Se vivesse fora da Ilha da Fantasia, o ministro poderia ter lembrado um fato bem conhecido. Quando um país sai de uma recessão, o emprego normalmente se recupera mais devagar que o conjunto das atividades. Para repor as empresas em movimento, os funcionários trabalham mais duramente. Assim, o aumento de produtividade torna dispensáveis, por algum tempo, novas contratações. Esse argumento daria conta de uma parte dos fatos. Mas as pessoas mais atentas ainda sentiriam falta de uma resposta para o dado mais impressionante.

Alguma defasagem entre a retomada econômica e a recuperação do emprego pode ser normal, mas a história observada no Brasil é diferente. Não houve, no terceiro trimestre, apenas uma reação mais rápida do consumo e da produção industrial. Houve aumento do desemprego, uma hipótese negligenciada nos manuais. E esse aumento foi notável por mais de uma razão.

A desocupação de 14,6% no trimestre de julho a setembro foi a maior da série iniciada em 2012. Em vez de simplesmente se prolongar, o desemprego aumentou 1,3 ponto porcentual entre o segundo e o terceiro trimestres e atingiu um recorde. Nesse intervalo, a população desocupada aumentou 10,2% (mais 1,3 milhão de pessoas) e passou a ser 12,6% superior à de igual período de 2019.

Esse recorde foi só um dos fatos notáveis. A população ocupada chegou ao nível mais baixo da série histórica. A taxa de ocupação, de 47,1% da população em idade de trabalhar, também foi a menor da série. As pessoas ocupadas foram pela primeira vez menos de metade do contingente disponível.

Mais que um descompasso, houve um trágico desencontro, nesse período, entre a atividade econômica e as condições de emprego. No terceiro trimestre a economia produziu 7,5% mais que no segundo, de acordo com o Monitor do PIB – FGV. Pela estimativa do Banco Central, divulgada alguns dias antes dos cálculos da FGV, a atividade havia sido 9,5% maior que a do período de abril a junho. Os dados oficiais do Produto Interno Bruto de junho a setembro devem ser divulgados dia 3 pelo IBGE.

Os números devem confirmar uma forte reação, embora talvez insuficiente para compensar a queda do segundo trimestre. As estimativas divulgadas indicam essa insuficiência, semelhante àquela observada em dezenas de países. Em muitas dessas economias as condições de emprego melhoraram, embora permaneçam danos causados pela crise. Nos 37 países da Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE), o desemprego médio em agosto, de 7,4%, já era 0,6 ponto menor que o de julho. Continuava superior ao de fevereiro, mas a redução havia começado.

No Brasil, o número oficial do desemprego mostra só uma parte do problema da ocupação. Quando se juntam desempregados, ocupados por tempo insuficiente, desalentados e ainda a chamada força de trabalho potencial, chega-se a 33,2 milhões de indivíduos. O drama ficaria ainda mais visível com a adição dos empregados sem carteira assinada (9 milhões).

A política de reativação pouco se ocupou do emprego. Só um exemplo: micro e pequenos empresários, muito importantes para a criação de vagas, continuam com muita dificuldade para conseguir crédito. Mesmo na Ilha da Fantasia esse fato deve ser conhecido. Muito menos percebido, lá, é o drama do desemprego.

O ESTADO DE S. PAULO

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