Valor Econômico –
O decreto editado recentemente pelo governo para consolidar normas trabalhistas deve restringir as autuações dos fiscais de trabalho nas análises de casos de terceirização. A regra publicada este mês e baseada na reforma trabalhista deixa claro que as empresas contratantes só poderão ser autuadas se ficar efetivamente clara a relação de trabalho com o funcionário terceirizado, por meio da ocorrência de quatro requisitos: habitualidade, subordinação, onerosidade (quem paga o salário) e pessoalidade.
Segundo o texto do governo, não configura vínculo empregatício a relação trabalhista entre os trabalhadores ou sócios das empresas prestadoras de serviços, independentemente do seu ramo de atividade, e a empresa contratante. Antes não havia orientação em decreto sobre como o fiscal deveria proceder.
O Judiciário considera que a terceirização é válida, inclusive da atividade-fim, desde que não estejam presentes os elementos que, combinados, configurariam a relação de trabalho. Mas as decisões têm variado, com as contratantes às vezes sendo responsabilizadas pelo funcionário terceirizado, e em outras, não.
Uma fonte do Ministério do Trabalho destaca que o Decreto nº 10.854 é basicamente uma “organização de abordagem” e não “inventa nada sobre a lei”, deixando claro que os quatro princípios têm que ser seguidos pelo fiscal para que a autuação não seja derrubada posteriormente pelas empresas na Justiça.
A intenção, segundo a fonte, é proteger o mecanismo da terceirização, garantindo punição em caso de burla, desde que haja elementos suficientes para imputar a responsabilidade do contratante, e evitando excessos. Esse interlocutor reconhece que a intenção é deixar mais claro para o fiscal como proceder, pois antes não havia orientação.
“O decreto deve diminuir as autuações dos fiscais do trabalho. A discricionariedade do fiscal ficou menos subjetiva. Terá que mostrar elementos efetivos de subordinação direta entre o terceirizado e a empresa contratante e não indireta ou estrutural”, diz o sócio da área trabalhista do Bichara Advogados, Jorge Matsumoto.
Ele aponta que esse tema pode acabar sendo debatido no Judiciário, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF). Matsutmoto elogiou de forma geral o decreto, que, em sua visão, busca equilibrar o tema da dignidade do trabalhador com a liberdade de ofício e o pleno emprego.
Segundo o advogado Mauricio Corrêa da Veiga, o Decreto 10.854 acaba repetindo o que a lei de terceirização combinada com a reforma trabalhista de 2017 colocaram e impede que fiscais do trabalho lavrem autuações quando há apenas indícios da existência dos elementos que caracterizam a relação de trabalho. “O fiscal do trabalho não vai poder chegar em uma empresa e falar que a terceirização é ilícita e autuar, ele passa a estar vinculado ao decreto”, afirma.
Para ele, a norma “veio em boa hora”, para confirmar as leis anteriores e também vincular a administração pública. “Nada impede que o Ministério Público do Trabalho [MPT] abra um inquérito ou ação, mas o fiscal não tem mais autonomia para apontar o vínculo entre terceirizado e tomador de serviço”, diz. Ele acrescenta que o decreto não contraria a jurisprudência, já que se trata de uma orientação ao Executivo.
O decreto não altera em nada a atuação do MPT, segundo José de Lima Ramos Pereira, procurador-geral do trabalho. “Quem vai dizer se há terceirização ou não, não será o decreto, mas a relação de trabalho de fato”, afirma. De acordo com ele, há vínculo quando existe fraude na terceirização ou ela não preenche os requisitos para ser válida.
Ele diz que o texto traz praticamente as mesmas previsões da reforma trabalhista. Uma novidade é a previsão do parágrafo 6º do artigo 39, de que a caracterização da subordinação deverá ser demonstrada no caso específico e vai incorporar a submissão direta, habitual e reiterada. Isso não está na reforma trabalhista, segundo o procurador, nem na CLT.
Já Camilo Onoda Caldas, sócio do Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, lembra que existiram outras tentativas de afastar o vínculo com o terceirizado, mas não é possível desconfigurar a relação de trabalho quando presentes, ao mesmo tempo, a onerosidade, habitualidade, subordinação e pessoalidade. “O que eles tentam fazer é dizer que não tem vínculo empregatício, que tem os quatro elementos”, diz.
Para o advogado, o governo tem a intenção de liberar de forma mais ampla a terceirização, mas a forma como isso vem sendo feito só cria a falsa impressão de que houve alguma mudança, o que pode estimular algumas empresas a exagerarem – e se arrependerem mais para a frente. “Não vai ajudar em nada porque, no fim, as pessoas vão judicializar. O Judiciário vai condenar e as empresas vão ficar frustradas”, afirma.
Caldas reforça que se houver relação de prestação de serviços onde estão presentes os quatro elementos que configuram o contrato de trabalho, a empresa não tem como escapar da exigência de vínculo, por mais que o decreto diga que não há vínculo. “Não tem como a lei querer superar a realidade”, diz ele, lembrando que no direito do trabalho, pelo princípio da primazia da realidade, não importa o que é colocado no papel mas como se dá, de verdade, a relação de trabalho.
Procurado pelo Valor, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho preferiu não se manifestar.