O Congresso manipulou o orçamento federal para evitar o acionamento dos gatilhos (medidas de contenção de gastos) aprovados na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) emergencial e turbinar investimentos, com aval do governo do presidente Jair Bolsonaro. Os parlamentares diminuíram a proporção de despesas obrigatórias em relação ao total, condição para o acionamento do ajuste previsto no teto de gastos, incluindo o congelamento no salário dos funcionários públicos. A decisão antecipou um movimento para repetir a manobra nos próximos anos e tornar a PEC emergencial uma peça de ficção.
Pela Emenda Constitucional 109, promulgada no último dia 15, os gatilhos – que na prática são a punição para o rompimento do teto – só serão acionados se a despesa obrigatória superar 95% do total na aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA), não importando o que aconteça ao longo do ano. Na prática, esse limite pode estourar durante a execução efetiva dos gastos sem que haja a contenção.
A manobra feita esta semana é uma receita pronta para o mesmo ser feito no futuro, pois neste ano os salários públicos já estão congelados. As despesas obrigatórias do Executivo estavam em 92,4% no projeto do Orçamento de 2021 enviado pelo governo, já abaixo do limite. Com o corte nas despesas previdenciárias e no seguro-desemprego feito para acomodar recursos para obras e projetos de interesse eleitoral, a proporção ficou ainda menor: 90,6%, conforme cálculos da consultoria da Câmara. A estratégia pode levar o Congresso e fazer a mesma manipulação quando o patamar real de despesas obrigatórias superar 95%, o que deve ocorrer em 2024 ou 2025, de acordo com projeções da equipe econômica e do Congresso.
O senador Marcio Bittar (MDB-AC) foi relator tanto da PEC emergencial quanto do Orçamento. Ele tirou R$ 13,5 bilhões dos benefícios previdenciários quando a equipe econômica e consultores do Congresso apontavam a necessidade de aumentar essas mesmas despesas em R$ 8,3 bilhões. Por outro lado, aumentou os gastos com investimentos (que não são despesas obrigatórias). Bittar argumentou que nos anos anteriores a despesa empenhada com Previdência foi menor do que a prevista e se apegou à economia da reforma feita em 2019. Ignorou, porém, os reajustes da inflação e do salário mínimo que mexem diretamente nesses gastos, além do possível e praticamente inevitável impacto da crise de covid-19 no seguro-desemprego.
O relator admitiu a articulação para aumentar investimentos por meio de cortes em despesas obrigatórias. O recado foi dado ainda em fevereiro, quando ele apresentou o parecer da PEC emergencial. “As despesas obrigatórias têm expulsado do orçamento federal as despesas com investimentos e com o custeio da máquina pública”, escreveu Bittar ao justificar a regra dos 95% na ocisão, em meio a críticas de técnicos do próprio Congresso. Na quinta-feira, 25, durante a votação do Orçamento na Comissão Mista de Orçamento (CMO), ele voltou a expor a estratégia afirmando que os cortes abriram espaço para investimentos.
Bittar reforçou que o Ministério da Economia, chefiado pelo ministro Paulo Guedes, não enviou formalmente nenhuma proposta de modificação no Orçamento, nem para apontar os cortes necessários nem para elevar as despesas obrigatórias, apesar de ter alertado sobre a necessidade de alteração publicamente. “Nós, no dever, como brasileiros, de ajudar o governo, para ajudar o Brasil, é que participamos ativamente na solução de onde tirar o recurso que estamos hoje aprovando, para que esses ministérios tenham o seu orçamento recomposto, e obras tão fundamentais para o Brasil não sejam paralisadas”, disse o relator.
Além de fazer um orçamento que pode ficar fora da realidade fiscal neste ano, o problema apontado pelo consultor Ricardo Volpe, da Câmara dos Deputados, é que o Congresso pode repetir o corte de despesas obrigatórias nos anos seguintes para nunca acionar os gatilhos e liberar o aumento de gastos com funcionários e obras de investimento. “A aprovação do Orçamento para 2021 demonstra tal fragilidade em não considerar a execução financeira. A emenda da PEC emergencial pode se tornar inócua para a União tanto por esse aspecto como por ter postergado o seu acionamento próximo ao prazo de revisão previsto no Novo Regime Fiscal”, afirmou Volpe. A regra do teto de gastos terá que ser revista em 2026.
A PEC emergencial alterou significativamente a dinâmica do teto. Os gatilhos, que na prática são a punição para o descumprimento do teto, não valem mais para rompimento da regra ao longo do ano, como era antes. Dessa forma o governo poderá furar o teto sem ter que frear os gastos. O perigo nessa estratégia é cometer crime de responsabilidade e dar base jurídica para um processo de impeachment de Bolsonaro no futuro.
Mudança de carimbo
O único órgão federal que estourava o índice de 95% das despesas obrigatórias neste ano era a Defensoria Pública da União (DPU), mas os defensores escaparam do ajuste. O Congresso cedeu a um pedido da instituição e alterou a classificação de uma série de despesas, tirando R$ 59,5 milhões do carimbo das obrigatórias e colocando esse valor como gastos discricionários. Até o pagamento de estagiários foi tirado de um lugar para outro. No final das contas, o patamar das despesas obrigatórias do órgão caiu de 99,4% para 88,7%, afastando os gatilhos.
Em 2021, os reajustes salariais já estão congelados, mas a manobra libera o aumento de despesas para os próximos anos. De acordo com a DPU, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) protege os gastos com assistência jurídica ao cidadão carente de contingenciamento (bloqueios para cumprir as regras fiscais), fazendo com que esses recursos sejam classificados como despesa obrigatória e elevando o patamar. Esse argumentou sustentou o pedido aos parlamentares. A LDO, porém, traz uma série de outros gastos não obrigatórios livres de contingenciamento.
Em resposta à reportagem, a DPU afirmou que o gasto com pessoal é “de apenas 51%” na Defensoria e encaminhou nota técnica argumentando que parte das despesas classificadas como obrigatórias precisariam ser redefinidas, como correio e cerimonial. No caso dos estagiários e terceirizados egressos do sistema prisional, o texto justifica que os gastos “podem, no atual contexto de pandemia e de forma excepcional, serem considerados como discricionários, haja vista a possibilidade de remanejamento de pessoal de áreas não correlacionadas à atividade fim da DPU, priorizando-se, nesse momento, o quadro de pessoal voltado ao atendimento à população carente.” O órgão citou a mudança da PEC emergencial e confirmou que a mudança “adiantou um movimento que seria natural para o Orçamento de 2022, por meio dos trâmites tradicionais e apoio natural” do Ministério da Economia.
O ESTADO DE S. PAULO