Cade investiga formação de cartel entre departamentos de recursos humanos

Pela primeira vez, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) investiga suposta formação de cartel entre departamentos de recursos humanos de empresas. O caso envolve grandes indústrias farmacêuticas, além de fornecedores de serviços e equipamentos médico-hospitalares, que teriam trocado informações sensíveis ao mercado de trabalho — condições de contratação, remunerações, reajustes salariais e benefícios oferecidos aos funcionários.

Se no Brasil o caso é inédito, lá fora já é uma tendência. Há condenações nos Estados Unidos, na Europa e no Canadá. Agora, o caso das farmacêuticas deve servir de alerta para que empresas reforcem os cuidados com compliance relativo a dados sobre seus funcionários. No total, são 37 empresas e 108 funcionários investigados. Entre elas estão Abbott, Bayer, Johnson & Johnson, Roche, Novartis, Siemens Healthcare, Alcon e Valeant. Caso sejam condenadas, podem sofrer pesadas multas, que variam de 0,1% a 20% do faturamento bruto.

Já os executivos poderão ter que arcar com multas que podem ir de R$ 50 mil a R$ 2 bilhões. O administrador estatutário pode ser punido com valores de 1% a 20% da multa aplicada à empresa. As penalidades estão no artigo 37 da Lei nº 12.529, de 2001, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Os executivos ainda podem ser condenados por crime de cartel, com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa, segundo o artigo 4º da Lei nº 8.137, de 1990. A investigação, instaurada no dia 16 de março, partiu de um acordo de leniência firmado, em setembro de 2019, entre o Cade, o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP), a companhia de origem sueca de equipamentos de saúde Getinge, atual Maquet do Brasil, a Maquet Cardiopulmonary do Brasil e alguns funcionários.

O processo foi aberto por indícios de acordos de fixação de condições comerciais e troca de informações concorrencialmente sensíveis no mercado de trabalho. Além disso, há suspeitas de que as empresas também teriam atuado de forma coordenada para estabelecerem valores e condições para a contratação de mão de obra e gestão de pessoas. As condutas anticompetitivas teriam sido operacionalizadas por um grupo de cooperação informal entre os concorrentes, autodenominado “MedTech”, e teria ocorrido entre o fim de 2009 e o início de 2018. Segundo nota do Cade, enviada ao Valor, com a instauração do processo administrativo, os acusados são notificados para apresentarem suas defesas. “Ao final da instrução, a Superintendência opina pela condenação ou pelo arquivamento do caso em relação a cada um dos investigados, e remete o processo para julgamento pelo Tribunal Administrativo do Cade, responsável pela decisão final”. O órgão acrescenta que “não há prazo legal para conclusão da investigação”.

Ex-procurador-geral do Cade e sócio do Mudrovitsch Advogados, o advogado Victor Rufino afirma que o caso brasileiro chama atenção pela quantidade de empresas e funcionários envolvidos. E é, sem dúvida, acrescenta, o primeiro a tratar de questões trabalhistas como prática anticoncorrencial. Nos Estados Unidos, Europa e Canadá já há condenações. As atenções se voltaram para esse tipo de prática em 2016, com a investigação de empresas no Vale do Silício, na Califórnia, de acordo com Rufino. Em janeiro, o Departamento de Justiça americano aplicou a primeira condenação criminal e antitruste pela infração conhecida nos Estados Unidos como “no-poaching”.

A partir dessa investigação, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos traçou diretrizes para dizer o que seria troca de informações sensíveis entre departamentos de recursos humanos, explica a advogada especializada na área Leonor Cordovil, do escritório Grinberg Cordovil. “Isso não quer dizer que as empresas não possam fazer benchmarking, mas existem limites para isso”, diz. Pela primeira vez, afirma o advogado trabalhista Daniel Chiode, do Chiode Minicucci, fala-se de acordos de leniência e delação premiada com contornos trabalhistas. “Vão ser analisados até que ponto pode haver trocas de informações sobre salários e benefícios e como isso pode afetar a concorrência”, diz ele, acrescentando que a prática é comum em diversos setores. Especialista em direito da concorrência, o advogado José Del Chiaro afirma que a troca de informação sensível prejudica a competitividade porque quando você sabe quanto o seu concorrente paga, cobra ou o que vai fazer, você pode trabalhar igual e manter um padrão de concorrência frente aos consumidores.

Mas Chiaro entende que a troca de dados sensíveis não deve ser julgada pelo Cade do mesmo modo como um cartel clássico. “Se para cartel clássico o órgão antitruste tem aplicado multa de 16%, para esses novos casos deve chegar a 5%”, diz. “Contudo, se for comprovado haver um pacto de não contratar funcionário da outra empresa, ou de se fazer uma lista de nomes de funcionários que não podem ser contratados, configuraria-se um cartel clássico e a pena aumentaria”. Chiaro alerta ainda que, como o caso envolve departamentos de recursos humanos, além do MPF, o Cade poderá oficiar também o Ministério Público do Trabalho. “Pode entrar com representação dizendo que a coletividade dos trabalhadores foi prejudicada.”

Essa investigação é reflexo de uma mudança no direito antitruste. “Antes, somente visava o efeito no consumidor. Agora as autoridades percebem cada vez mais que ele é mais amplo, inclusive sobre o mercado de trabalho”, afirma o professor de direito da Universidade Mackenzie, Vicente Bagnoli. “Recentemente, no Canadá, três grandes redes de supermercado decidiram pagar um adicional de insalubridade aos funcionários presenciais, mas em conjunto resolveram deixar de pagar e uma investigação foi iniciada. É uma tendência.” Caso as empresas brasileiras sejam condenadas no Cade, cabe questionamento na Justiça ou elas podem ainda firmar um Termo de Compromisso e Cessão de Práticas (TCC).

Por nota ao Valor, a assessoria de imprensa da Roche Diagnóstica afirma que “por ora, desconhece o teor das alegações apresentadas e se coloca à disposição para colaborar com as autoridades”. A Abbott informou estar ciente da investigação e que é “comprometida em manter os mais altos padrões profissionais de ética e compliance ao redor do mundo”. A Siemens Healthineers também diz estar ciente da investigação e tem cooperado com a autoridade. A Bayer informou que ainda não foi notificada formalmente pelo Cade, portanto não tem subsídios para se manifestar a respeito do processo. A Novartis esclarece que não foi oficialmente notificada, mas está à disposição das autoridades. A Johnson & Johnson Medical não comenta processos administrativos em andamento. As demais empresas foram procuradas, mas não deram retorno.

VALOR ECONÔMICO

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