A Justiça de São Paulo tem liberado comerciantes de pagar contas de energia calculadas pela média de consumo, método adotado pelas distribuidoras no início da pandemia da covid-19 e que teria gerado cobranças maiores em um momento de redução das atividades. Em um dos casos, além de determinar a emissão de faturas com base no efetivo consumo, o juiz condenou a concessionária a pagar indenização por danos morais ao consumidor. São as primeiras respostas do Judiciário sobre uma prática que, muito embora autorizada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), órgão regulador do setor, gerou um boom de reclamações. De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), com base em dados da própria Aneel, foram mais de 750 mil queixas registradas em 2020 apenas sobre cobranças a maior.
No Estado de São Paulo, a Enel, que atende 24 municípios da região metropolitana da capital, foi multada pelo Procon em R$ 10,2 milhões. A concessionária discute a penalidade na esfera administrativa. No início da pandemia, em março de 2020, a Enel e outras distribuidoras receberam, por meio da Resolução nº 878, de 2020, sinal verde da Aneel para substituir a conferência presencial do medidor pela cobrança estipulada com base na média de consumo dos 12 meses anteriores ou pela autoleitura, em que o próprio consumidor informa quanto consumiu de energia. Era uma medida para evitar a circulação de funcionários das concessionárias nas ruas e conter a propagação do vírus. De acordo com advogados, porém, ocorreram dois problemas: cobranças abusivas e falhas de sistema da distribuidora para receber informações de autoleitura pelo consumidor. Em paralelo, os canais de comunicação com a Enel São Paulo não teriam funcionado a contento. “A dificuldade de obter contato pelo site e pelo SAC, além das filas que se formaram nos postos de atendimento, disseram muito sobre a falha da empresa em lidar com a situação”, afirma Michel Roberto de Souza, advogado no Idec.
No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), uma lanchonete conseguiu anular duas cobranças que somavam R$ 3 mil referentes aos meses de abril e maio de 2020, que foram protestadas pela Enel. Para os desembargadores, a cobrança pela média de consumo não poderia ser aplicada de forma indiscriminada para setores da economia que, por imposição do poder público, tiveram que fechar as portas ou restringir os horários de funcionamento. “Tal cobrança não estampa a realidade fática e coloca a consumidora em situação de extrema desvantagem frente à concessionária, o que autoriza a intervenção judicial, para proteção contratual do consumidor”, afirma na decisão o desembargador Edgard Rosa, da 22ª Câmara da Seção de Direito Privado (apelação nº 1056423-56.2020.8.26.0100).
Em Campinas, uma loja obteve sentença que proibiu a CPFL Energia de realizar a cobrança pela média. Pela decisão, a fatura deve ter por base o consumo efetivo de abril de 2020 até enquanto durar a fase vermelha no plano de retomada do Estado de São Paulo e a imposição de fechamento dos shopping centers. “Entendimento contrário, conquanto digno de respeito, implicaria em forçar a autora ao cumprimento de obrigação desproporcional, suportando encargos excessivos por serviços não utilizados, sobretudo diante das restrições do poder público que reduziu drasticamente o movimento de clientes, em razão da pandemia provocada pela covid-19”, diz na sentença o juiz Francisco Blanco Magdalena, da 9ª Vara Cível do Foro de Campinas (processo nº 1000097- 90.2020.8.26.0548).
Em sentença proferida no início deste mês, um restaurante da capital paulista também conseguiu anular cobranças feitas com base na média de consumo, que foram levadas a protesto. O magistrado ainda condenou a Enel a indenizar o consumidor em R$ 6,5 mil por danos morais pelos protestos, que julgou indevidos (processo nº 1106035- 60.2020.8.26.0100). De acordo com advogado que representou o comerciante, Percival Maricato, do Maricato Advogados, o consumidor tentou informar a autoleitura à Enel, mas sem sucesso. Foi, então, cobrado pela média de consumo. “Diversos contatos foram tentados com a empresa. Mas telefonar era perda de tempo”, afirma.
Para o juiz Antonio Carlos de Figueiredo Negreiros, da 7ª Vara Cível de São Paulo, que julgou o caso, ficou demonstrado que a Enel não forneceu os meios para o consumidor informar a autoleitura. “Considerando que a ré, na prática, não disponibilizou meio hábil para o autor registrar a autoleitura, caberia à companhia realizar o faturamento com base na demanda mínima conforme carga instalada na unidade”, afirma na decisão. De acordo com a advogada Ana Júlia Moraes, sócia do escritório WFaria, a situação gera distorções porque, por indisponibilidade do sistema para recebimento de autoleitura, a empresa sujeitou o comerciante a cobrança indevida. “Na prática, a empresa não deu escolha ao consumidor.” Maricato avalia que, ainda que autorizada pela Aneel, a cobrança pela média de consumo é abusiva. Ele lembra que os comerciantes foram obrigados a fechar as portas ou reduzir os horários de atendimento. “Houve quem desligasse inclusive os freezers porque não havia mais estoque”, diz o advogado que representa a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) em ação coletiva sobre o assunto que tramita na 18ª Vara Cível de São Paulo. Em nota, a Enel São Paulo informa que adotou a cobrança pela média de consumo entre os meses de março e julho de 2020, mediante autorização da Aneel. De acordo com a concessionária, a leitura presencial dos medidores foi retomada em agosto para todos os clientes. Foi, então, feito automaticamente o ajuste na conta de energia entre o que foi cobrado pela média e o de fato consumido no período. A CPFL, também por nota, afirma que buscou manter a leitura da medição de consumo da energia durante a pandemia e o faturamento ocorre conforme a regulamentação da Aneel.
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