Sócia de uma empresa de fotografias publicitárias há três décadas, Rita Silva, de 55 anos, começou a enfrentar dificuldades na carreira profissional assim que a pandemia teve início. A demanda por trabalhos caiu já em março, quando houve necessidade de iniciar a quarentena, e ela perdeu dois grandes clientes, causando impacto em sua renda. Acostumada a uma rotina ligada nos 220 volts, teve de trocá-la por outra, muito mais lenta.
O desconforto com a carreira veio da reflexão de que sua trajetória não seria mais tão linear quanto havia imaginado antes. Além disso, ficaram mais claras as dificuldades do ramo em que atua. A principal, na visão dela, é que alguns clientes não dão o devido valor a esse trabalho, uma vez que “todo mundo é fotógrafo” nas redes sociais.
Como ela, 32% dos brasileiros passaram a sentir que sua vida profissional piorou – ou mesmo piorou muito – durante a pandemia, segundo dados da pesquisa realizada pela consultoria de estratégia Oliver Wyman com cerca de 4 mil brasileiros.
Pessoas que tiveram diminuição na renda passaram a ver a carreira com ainda menos otimismo. Entre os que enfrentaram essa redução, 51% têm um sentimento de piora. No grupo dos que mantiveram os ganhos, somente 14% se disseram pessimistas.
“Não consigo me ver parada e não pensar na possibilidade de ir novamente para a rua ou ir no perfil do LinkedIn e pegar uma empresa para trabalhar”, diz Rita. “Fico pensando se é minha vontade voltar para o mercado, me culpo, mas quando imaginei que teria pandemia?”
Essa insatisfação com a carreira é até um dos motivos para se buscar ajuda para cuidar da saúde mental. No levantamento da Oliver Wyman, os brasileiros foram questionados sobre os motivos que os levaram a recorrer a esse apoio: estresse financeiro foi o mais indicado (23%), seguido por estresse no trabalho (13%).
A publicitária já havia encarado a síndrome do pânico há 20 anos, em decorrência de problemas pessoais e do excesso de trabalho. Consciente da importância do tratamento, ela se cuidou, mas o ano passado trouxe gatilhos complicados. “Me conheço, sei que estou num processo de ficar no casulo, de não querer conversar e só pensar. E quando começo a pensar demais, é hora de buscar ajuda, porque tenho problemas, contas para pagar, mas até quando? A gente precisa de médico, não dá para se automedicar”, diz.
A sensação de piora detectada pela Oliver Wyman foi corroborada também pelos integrantes da comunidade de carreira & empreendedorismo do Estadão no Telegram. Com dados da consultoria em mãos, a reportagem lançou uma enquete no grupo de discussão no aplicativo para saber qual era a percepção dos leitores. Até ontem, 2 de março, a maioria (68%) disse ter sentido piora na carreira ao longo do último ano, entre as 95 pessoas que responderam. Sobre os principais motivos para essa piora, foram 107 respostas, das quais surgiram duas razões predominantes: impacto na renda (37%) e na saúde mental (37%).
Segundo o psiquiatra Eduardo Tancredi, diretor-médico da eCare Group e integrante do comitê técnico da Aliança para a Saúde Populacional, isso é parte de um processo que começa com uma sensação de ordem que foi quebrada pela pandemia. Uma combinação de fatores, segundo ele, afeta o bem-estar e promove essa percepção.
“É uma onda que passa pela empolgação inicial de mudanças, de ajustes, mas começa a pegar as pessoas nas adaptações do dia a dia”, diz o médico. “Nosso cérebro coloca ordem na carreira, faz planejamentos. E, de repente, chega essa desordem que faz virem à tona sintomas emocionais, insatisfações com o ambiente de trabalho, com os chefes, e ainda mistura tudo isso dentro de casa.” O novo modelo de trabalho, com cobranças exageradas, fadiga e reuniões intermináveis, é outro ingrediente para essa perda de ânimo.
Para Joel Dutra, coordenador do Programa de Estudos em Gestão de Pessoas da Fundação Instituto de Administração (Progep-FIA), uma pessoa com posicionamento passivo diante de crises entende as mudanças como uma ameaça à carreira. Ele menciona estudos indicando que o brasileiro tem baixa propensão ao protagonismo no ambiente de trabalho, o que limita nossa visão em relação às possibilidades.
“Naturalmente, por conta dessa característica, esse movimento de incerteza, de caos, tem muito mais impacto. A pessoa fica em um processo de perplexidade porque nunca refletiu sobre a carreira”, afirma Dutra. Ele pondera, no entanto, que o sentimento de piora das oportunidades de crescimento não é infundado. “Em momentos de crise, naturalmente as oportunidades de desenvolvimento se reduzem. Então, é uma percepção em cima de uma realidade.”
Para ter uma atitude mais ativa frente à carreira, o coordenador orienta que todos reflitam sobre seus propósitos profissionais. “Pergunte-se: o que eu almejo de forma mais profunda? Qual contribuição eu quero oferecer?”, exemplifica.
PANDEMIA TEVE MAIS IMPACTO PARA MULHERES E MAIS JOVENS
A sensação de que a carreira profissional piorou ou piorou muito durante a pandemia é mais intensa para quem sofreu diminuição de renda, entre os que ganham até dois salários mínimos, as mulheres e também entre os mais jovens (de 18 a 24 anos). “Havia expectativa de que os jovens pudessem ter postura diferente, mas vejo que é muito mais a reação diante de crises”, diz Dutra. “Os mais jovens reagem com mais velocidade, até por conta das redes sociais. Mas, em termos de comportamento, continua o mesmo.”
Tancredi observa que algumas pessoas têm mais dificuldade para se adaptar às mudanças, outras são mais resilientes. Isso explica, em parte, esse sentimento de piora ou melhora em relação à carreira, bem como o impacto que essa percepção pode ter na saúde mental.
“A pessoa que teve de se adaptar em casa, ficou irritada, ansiosa, com palpitação e dores de cabeça, olha o futuro de uma perspectiva não otimista”, diz o psiquiatra. “Já aquelas que estão com sintomas não tão intensos podem estar dormindo mal, por exemplo. E isso também vai atrapalhar o desempenho delas no trabalho.”
O psiquiatra diz que é preciso haver sustentabilidade emocional e explica que o papel dos líderes é importante para reduzir essas repercussões negativas. “Todo mundo pensa que a síndrome de burnout tem como causa somente a empresa. Mas ela é uma combinação entre um perfil de personalidade, de pessoas que são muito exigentes, com dificuldade de lidar com frustração, e empresas que não sabem lidar com isso”, afirma Tancredi. Para ele, as organizações precisam fazer um trabalho que identifique quem está doente e previna o surgimento de problemas nos demais profissionais.
“As empresas não percebem o benefício disso e focam em ações soltas. Tem de ter um ecossistema que funcione adequadamente, que empresas sigam uma cadeia de promoção de bem-estar, prevenção e tratamento, oferecendo informação e educação.” O conceito de sustentabilidade emocional no ambiente de trabalho é reforçado aqui, porque não adianta ofertar aulas de ioga e sessões de psicoterapia se os líderes seguem exigindo jornadas exaustivas.
CULTURA ORGANIZACIONAL FAZ A DIFERENÇA
Certificada pelo Top Employers Institute como uma das cinco melhores em gestão de pessoas no País, a farmacêutica Boehringer Ingelheim do Brasil adotou medidas para se aproximar dos funcionários em meio ao trabalho remoto e garantir a segurança de quem precisou atuar presencialmente. O suporte oferecido, estendido às famílias, é parte de uma transformação organizacional que já estava em curso, conta Esteban Ziegler, diretor de Recursos Humanos.
Durante a pandemia, a companhia colocou 1,6 mil funcionários administrativos e de campo em home office e ofereceu a eles encontros virtuais com especialistas em mindfulness, gestão financeira, saúde emocional, gastronomia e ioga. Também foram criados grupos de afinidades liderados pelos próprios funcionários. “Ninguém melhor para compreender as dores e as dificuldades do que eles mesmos”, acredita Ziegler.
O diretor de RH diz que, apesar da distância, os trabalhos e as discussões sobre crescimento profissional continuaram. “Para nós, isso é estratégico. Precisamos assegurar que o talento que está dentro da companhia, que será a futura liderança, continue se desenvolvendo.”
Essa cultura organizacional passou a ser mais pautada nas empresas e, embora as transformações não aconteçam de um dia para o outro, elas são possíveis em todos os níveis, na opinião dele. “A cultura de confiança tomou o lugar da cultura de controle. Para isso, precisamos de uma liderança superengajada com essa transformação, que ocorre também pelo envolvimento dos liderados como parte do processo.”
A Boehringer Ingelheim também manteve um canal aberto com as lideranças. Diretora da unidade de Negócios, Carolina Anjos, de 37 anos, contou com o suporte da empresa para fazer vida pessoal e profissional funcionarem bem no home office. Ela recebeu orientações para montar um miniescritório no próprio quarto, com dicas de ergonomia e recursos para comprar materiais necessários ao trabalho remoto.
“Eu tenho duas filhas, de 1 e 5 anos. Quando a gente entrou em quarentena, as escolas fecharam e eu fiquei em pânico. Passei um mês completamente fora do eixo, um mês de muita angústia, muitas incertezas”, lembra Carolina. “Depois, as coisas foram se encaixando e entrou um papel fundamental da Boehringer para mim: a estabilidade e segurança que a empresa forneceu.”
Tudo é feito dentro de uma cultura que já existia na empresa, de todos poderem expor suas dores e propor soluções, para construírem um caminho em conjunto. “Compreendemos que a melhor maneira de encarar o futuro é essa cocriação, se envolver e dar um protagonismo especial a cada um dos funcionários”, diz Ziegler.
Seguindo o exemplo dos líderes executivos, Carolina ficou ainda mais presente e mais próxima de sua equipe neste período. Ela propôs ao time que lidera, por exemplo, um encontro semanal virtual, com tema livre. Todos precisam estar com o vídeo aberto, uma oportunidade de manter o contato olho no olho.
Em algumas áreas, a pandemia até trouxe mais oportunidades para as empresas e para os profissionais. É o caso de setores como inovação, dados e marketing digital, por exemplo. “O turnover aumentou. Em casa, surgem mais oportunidades de carreira e as pessoas estão transitando mais nesse período”, explica Paula Morais, CEO da Intera, startup de RH focada em recrutamento digital. “Há mais ofertas na mesa nessas áreas e isso empodera você como profissional.”
No entanto, Paula atesta que a saúde mental dos colaboradores também foi afetada e a superprodutividade que, a princípio é boa, trouxe o ônus da exaustão. Mais uma vez, a cultura da organização e o papel de suas lideranças fizeram a diferença.
“As lideranças orientam o time para separar o trabalho da casa, dão direcionamento para ter limite de reuniões e entrevistas por dia. Também há momentos com psicóloga para trabalhar questões de ansiedade e de inteligência emocional”, diz a CEO. “A cultura da Intera é vulnerável e humana. Preza que as pessoas tragam inquietações e o que está dificultando o trabalho.”
NO FUTURO, CARREIRA É VISTA COM OTIMISMO
Para os próximos 12 meses, a expectativa dos brasileiros é otimista. Quase dois terços deles esperam que o sentimento sobre a carreira melhore ou melhore muito. Outros 31% acham que ficarão na mesma situação e apenas 6% acreditam que estarão piores ou muito piores no campo profissional.
“Tenho esperança de conseguir encontrar algo que nos movimente. Não gostaria de voltar à loucura de chegar às 8 horas na empresa, sair à meia-noite e ‘tirar o sangue’ da equipe”, deseja a publicitária Rita Silva, cuja história você conheceu no início desta reportagem.
Ela conta que suas prioridades foram mudando ao longo deste período de pandemia. “Eu quero ter trabalho, rendimento e estabilidade, mas não a vida que eu tinha. Quero qualidade de vida, acordar, curtir minha mãe que está com 80 anos, ver minha filha, brincar com a nossa (cachorrinha) golden.”
Para Carolina Anjos, 2021 ainda será um ano difícil, de mais resiliência. Por outro lado, ela prospecta o melhor com os aprendizados que 2020 deixou. “Foi um ano que exigiu uma empatia que eu nunca tinha experimentado, tanto comigo – de não me cobrar muito – quanto com o time”, afirma. “A gente vai encontrar uma forma diferente de trabalhar, um modelo híbrido, a gente viu que muita coisa dá para ser feita remotamente e isso é algo que, inclusive, eu quero manter na minha carreira.”
O ESTADO DE S. PAULO