‘Ajuste parcial da Selic é insustentável. Por que insistir?’, diz Affonso Celso Pastore

O economista Affonso Celso Pastore, ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo e ex-presidente do Banco Central do Brasil, diz acreditar que um ajuste parcial no processo de normalização dos juros básicos no País é insustentável. “Por que em uma situação como esta a autoridade insiste em anunciar um ajuste parcial?(…) Para mim, a melhor alternativa seria a de reconhecer explicitamente que perseguirá o ajuste integral, sem, contudo, comprometer-se por atingir o novo equilíbrio dentro do ano calendário, e sem se comprometer com a magnitude dos próximos reajustes”, afirma.

Pastore alerta que o Brasil vive uma grave situação fiscal e avalia que a economia está sendo penalizada por isso. Para ele, a solução não se resume de forma simplista a cumprir o teto de gastos em um dado ano. E diz: “Não há uma diretriz firme do governo com relação a reformas que corrijam esse desequilíbrio. O real não está depreciado porque a taxa de juros está baixa, como dizem alguns operadores com interesse privado na valorização do real. Ele está depreciado porque nossa situação fiscal é insustentável. Enquanto não tivermos uma clara visão de como será corrigido nosso problema fiscal, iremos conviver com um real fraco”. Abaixo, trechos da entrevista:

O risco fiscal tem sido a tônica para a desvalorização do real em maior ímpeto do que as moedas pares frente ao dólar. Considerando o panorama atual das contas públicas, quais as implicações o sr. vê para a divisa local?
Durante o pânico da pandemia, que durou em torno de um mês, todas as moedas se depreciaram e o dólar se fortaleceu. Foi um típico episódio de ‘flight to quality’, que sempre ocorre quando a aversão a risco leva os investidores a preferirem ativos dos Estados Unidos. Logo em seguida, a forte reação do Federal Reserve [Fed, o banco central americano], derrubando a taxa básica para o ‘zero bound’ e comprando mais de US$ 2 trilhões de títulos do Tesouro estimulou os investidores a buscarem ativos em outros países. Tomei uma amostra de 20 países, e à exceção de Turquia, Argentina e Brasil, todas elas se valorizaram. A mediana desses países, que no momento do ‘flight to quality’ teve uma depreciação de 12%, está agora apenas 2% depreciada em relação ao dólar. Nada disso ocorreu com o real. Depreciou-se mais de 28% no momento do pânico, e se manteve depreciado daí em diante, com grande volatilidade entre dias e intradia. A única razão para esse comportamento é o risco fiscal, que colocou um prêmio de risco no câmbio (na curva de juros). Turquia e Argentina são países sofrendo graves crises econômica e política, e suas moedas nunca pararam de se depreciar. O Brasil vive uma situação fiscal insustentável, e sua economia está sendo penalizada por isso. A origem da insustentabilidade está no campo fiscal. A solução não se resume de forma simplista a cumprir o teto de gastos em um dado ano. Neste ano vamos cumprir “de jure” o teto de gastos, mas “de facto” ele será excedido em R$ 110 bilhões. Não há uma diretriz firme do governo com relação a reformas que corrija esse desequilíbrio. O real não está depreciado porque a taxa de juros está baixa, como dizem alguns operadores com interesse privado na valorização do real. Ele está depreciado porque nossa situação fiscal é insustentável. Enquanto não tivermos uma clara visão de como será corrigido nosso problema fiscal iremos conviver com um real fraco.

Em que pesem declarações mais otimistas da equipe econômica sobre o controle das contas públicas, qual cenário é possível traçar diante das manobras orçamentárias?
Esta já é a terceira vez que o teto de gastos é rompido. A primeira, que passou quase despercebida, foi a capitalização da Emgepron. A segunda, plenamente justificada porém exagerada, foi a que ocorreu em 2020. A terceira foi agora. Em 2020, o governo gastou muito mais do que seria necessário. Em uma lúcida entrevista dada há alguns meses, Ricardo Paes de Barros mostrou que o auxílio emergencial foi concedido a uma população superior a 66 milhões, que excede em muito o número dos que perderam o emprego e a pobreza extrema no Brasil. É um fato que atesta a incompetência do governo em lidar com uma situação como esta. A regra do teto de gastos foi um gesto político que sublinhava a necessidade de realização de reformas que contivessem o crescimento automático dos gastos obrigatórios, e a reforma da Previdência é insuficiente para atingir o objetivo desejado. Se tivermos uma recaída populista, o que é possível diante da fraqueza política do governo, não há dúvidas de que teremos uma elevação dos prêmios de risco, o que elevará a taxa de juros implícita da dívida pública e depreciará ainda mais o real. A consolidação fiscal é fundamental para removermos esse risco.

O Banco Central segue preocupado com o cenário fiscal e seus constantes impactos inflacionários. Na sua visão, até que ponto o fiscal está tendo peso nos cálculos do BC comparativamente à alta do dólar/commodities?
Boa parte do aumento recente da inflação é consequência da elevação dos preços internacionais de commodities e da depreciação cambial. A rápida recuperação da China e o enfraquecimento do dólar turbinaram um crescimento excepcional dos preços internacionais de commodities, e em particular os alimentos. Bom para a nossa agricultura, porém péssimo para os consumidores de baixa renda, que quando o IPCA de 12 meses ainda estava próximo da meta deste ano haviam crescido 20% em 12 meses. Horrível para quem está desempregado ou é dependente de uma ajuda emergencial. A boa notícia é que na margem esses reajustes já caíram, aproximando-se de zero, o que não elimina o fato de que ocorre uma mudança de preços relativos, que erodiu a renda real das classes de renda mais baixas. A outra pressão inflacionária veio dos preços dos produtos industriais, e esta ainda não se dissipou. Em torno de 60% de nossas importações são matérias-primas para a indústria, e a depreciação estreitou as margens dos produtores domésticos de produtos que usam tais matérias-primas, sendo custos parcialmente repassados para os preços. Movimentos como estes não sustentam um ciclo inflacionário contínuo desde que o Banco Central evite que afetem as expectativas, e com isso se tornem aumentos generalizados. Devido à recessão da covid a Selic em termos reais estava no campo negativo, e se persistisse nestes níveis não há dúvidas de que as expectativas de inflação cresceriam. O início do ciclo de ajuste da taxa de juros busca evitar que isso ocorra.

O senhor acredita que será necessário que o BC faça aumento maior no juro básico, para além do “ajuste parcial” que segue no comunicado?
Quero iniciar a resposta com um pouco de aritmética elementar. A estimativa do BC sobre a taxa real neutra de juros (com a qual há grande concordância entre os economistas). É que esta se situa em torno de 3% ao ano. Com a meta de inflação de 3,5%, para que as expectativas permaneçam ancoradas às metas terão que se estabilizar em 3,5% ao ano, e a taxa Selic nominal que – no equilíbrio – mantém esse resultado, em 6,5% ao ano. Embora nenhum banqueiro central possa se comprometer com o tempo exato no qual esse nível será atingido nem com a magnitude de cada um dos reajustes intermediários, sabemos que o ajuste integral somente terá ocorrido, na ausência de outras intercorrências, quando a Selic nominal chegar a 6,5% ao ano. Uma das grandes vantagens do regime de metas de inflação é a comunicação de qualidade, que permite prever o curso das variáveis, eliminando surpresas, e as experiências de maior sucesso na convergência da inflação para a meta são aquelas nas quais o mercado é informado pela autoridade que tem o compromisso de chegar ao novo equilíbrio, ou seja, fará o ajuste integral. Por que em uma situação como esta a autoridade insiste em anunciar um “ajuste parcial”. A dúvida tem uma razão muito simples: um ajuste parcial é insustentável. Por que insistir nele? Será que é devido ao temor de pressões políticas? Minha resposta a esta questão é simples: o BC acabou de obter a sua independência política, e consequentemente não deveria se preocupar em evitar pressões para que ajuste a taxa de juros. Se não há pressões políticas, a única outra explicação é que o Banco Central tem um outro diagnóstico, e se o tiver é bom que o explicite. Para mim, a melhor alternativa seria a de reconhecer explicitamente que perseguirá o ajuste integral, sem, contudo, comprometer-se por atingir no novo equilíbrio dentro do ano calendário, e sem se comprometer com a magnitude dos próximos reajustes.

A pandemia levou a relação dívida bruta/PIB do Brasil para perto de 100%, mas a equipe econômica já projeta que ela caia a cerca de 87%…
Não sei como a equipe econômica projeta a queda para 87%. Talvez a aritmética deles seja diferente da que aprendi no curso primário. Admitindo que o déficit primário de 2021 seja de R$ 110 bilhões – furo ‘de facto’ do teto -, que a taxa real de juros implícita da dívida não se eleve em relação ao seu spread atual com base na taxa real neutra de juros de 3% ao ano, que o PIB potencial cresça à taxa de 2% ao ano, e que de 2022 em diante o teto de gastos seja cumprido até 2029 (ou seja, que seja prorrogado entre 2026 e 2029), a relação dívida/PIB superará a marca de 100% do PIB em 2029. É desagradável quando autoridades fazem afirmações facilmente provadas como inconsistentes. Em nada contribuem para recompor a credibilidade, que já está bastante erodida.

Recentemente, integrantes do Banco Mundial e do FMI sugeriram estratégias para os países latino-americanos saírem fortalecidos da crise focando no investimento público. O senhor considera que o Brasil teria condições de fazer isso?
Países da América Latina que têm uma situação fiscal sólida podem seguir esse caminho. No Brasil, no entanto, a menos para os adeptos da MMT [Monetary Modern Teory, em inglês] este não é um caminho fácil. Há, no entanto, algo que pode ser um substituto dos investimentos públicos sem a utilização de recursos orçamentários. Refiro-me a investimentos em infraestrutura realizados por concessões. Sabemos o que deve ser feito. Em primeiro lugar precisamos de leilões competitivos, abertos a todos, inclusive aos estrangeiros, o que impede (ou pelo menos dificulta) a formação de cartéis que são uma porta aberta à corrupção. Em segundo lugar precisamos eliminar os riscos regulatórios, o que requer agências reguladoras independentes, não “aparelhadas” por interesses políticos e privados, que evitem a exploração do poder de monopólio (a consequência das concessões gerarem monopólios naturais) por parte dos vencedores da concorrência. Neste modelo o governo não tem que se preocupar em dar um hedge cambial aos estrangeiros, dado que dispõem de um amplo mercado de capitais em reais, através do qual evitam o risco do descasamento de moedas. Por que o Brasil não avança nesse campo? Investimentos em infraestrutura têm uma dupla vantagem: enquanto ainda estão sendo realizados ampliam a demanda agregada; e quando prontos reduzem os custos de transporte, entre outros, elevando a produtividade. Não temos recursos do governo, mas temos um governo que poderia ser ágil na criação das condições acima expostas, com o Brasil se beneficiando destes investimentos.

O que esperar sobre um ciclo de alta de juros nos Estados Unidos?
É alta a probabilidade de que o Fed em algum momento inicie uma elevação da taxa de juros. Por que? Tendo esgotada praticamente toda a munição monetária, os EUA passaram a usar a política fiscal, e temos que distinguir dois canais. O primeiro é o da política contracíclica, consubstanciado nesse pacote de U$ 2,9 trilhão – praticamente 10% do PIB -, que combinado com uma vacinação rápida e eficaz permite o desenvolvimento mais rápido do “efeito multiplicador”. O segundo é o dos estímulos aos investimentos em infraestrutura e em um conjunto de medidas buscando criar uma rede de proteção social que facilite o acesso ao mercado de trabalho. Embora sejam investimentos de magnitude ainda maior, ao contrário dos US$ 2,9 trilhões não serão financiados por dívida pública, e, sim, por impostos, cujas alíquotas para os mais ricos serão aumentadas, buscando contribuir para reduzir a enorme desigualdade na distribuição de rendas. Apesar de serem investimentos financiados integralmente por receita tributária, eles expandem a demanda agregada. Há um velho conhecido nosso, o “teorema do orçamento equilibrado”, no qual uma expansão de gastos igual ao aumento da receita leva a um aumento da demanda agregada. A soma de todos estes estímulos elevará a demanda agregada, e dá razão aos economistas norte-americanos que advertem para uma elevação da taxa de juros nos EUA. Um fortalecimento do dólar significa atração de recursos para os EUA saídos dos demais países, o que os levará a elevar suas taxas de juros. Ou seja, quando tudo isso ocorrer não teremos apenas o aumento da taxa de juros nos EUA, mas em todos os demais países, com consequências que não serão em nada agradáveis.

O ESTADO DE S. PAULO

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