O penoso caminho até a autonomia do Banco Central (BC) começou mesmo antes de sua criação (Lei 4.595/64). Roberto Campos – o avô, não o neto, que hoje dirige com competência a instituição – defendia que seus diretores tivessem mandatos fixos, não coincidentes com o do presidente da República.
Campos não logrou seu objetivo, mas foi um dos principais idealizadores das normas legais que possibilitaram o desenvolvimento do sistema financeiro nacional em bases modernas.
Desde então, a autonomia do BC não saiu do debate. Posições populistas e equivocadas levaram ao fracasso de várias tentativas de aprová-la. Basta lembrar o bordão “agora querem entregar o BC aos banqueiros”, um erro lógico primário, pois a história mostra que os grandes vilões da política monetária no mundo foram os governantes populistas. Crises bancárias e negligência com a inflação tiveram custo enorme para a sociedade, principalmente para os mais pobres.
No entanto, é preciso olhar o outro lado da moeda. Economistas que se declaram ortodoxos têm criticado, erroneamente, a meu ver, o projeto aprovado na Câmara, tachando de desnecessária e populista parte do parágrafo único do art. 1.º, aqui transcrito: “Sem prejuízo de seu objetivo fundamental o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego” (grifo meu). Observe-se que o objetivo fundamental, constante do caput do artigo, é a estabilidade de preços.
Zelar pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro já faz parte do arcabouço legal vigente. Vejamos os outros dois objetivos.
O segundo, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica, enriquece, no lugar de reduzir, a autonomia.
Em primeiro lugar, porque funciona dos dois lados. O BC pode endurecer a política monetária para evitar booms exagerados que aticem a inflação ou ser arrojado com a redução dos juros, nas fases de escassez de demanda, evitando longos períodos de aumento acentuado no desemprego.
Em segundo lugar, porque a suavização das flutuações da atividade econômica está de acordo com as numerosas constatações empíricas internacionais sobre a existência de histerese do ciclo econômico.
Em física, histerese pode ser entendida como “retardo” ou, de acordo com o Dicionário Houaiss, “fenômeno apresentado por determinados sistemas físicos cujas propriedades dependem de sua história precedente”. Em economia, significa que os ciclos econômicos acentuados podem, de fato, afetar a taxa de crescimento de longo prazo, ao contrário do que a teoria, até pouco tempo dominante, apregoava.
Há vários canais pelos quais a histerese pode se manifestar, dentre os quais, destacam-se: (1) longos períodos de desemprego acentuado resultam em perdas de habilidades e desatualizações, erodindo o estoque de capital humano; (2) maior e mais rápida obsolescência do estoque de capital; (3) fuga de cérebros; (4) redução da autoestima e das expectativas dos trabalhadores, que se acostumam no subemprego ou na informalidade; (5) piora das expectativas, diminuindo a disposição de assunção de riscos, entre vários outros.
Finalmente, tendo a concordar que o terceiro objetivo, fomentar o pleno-emprego, é desnecessário, porque os bancos centrais que adotam o regime de metas já levam em conta, em seus modelos, o grau de sacrifício imposto pelas políticas monetárias contracionistas. No entanto, há exagero no entendimento de que o BC poderia ser cobrado judicialmente por isso. O projeto de lei fala em pleno-emprego, não em desemprego nulo. Não há meta quantitativa para a taxa de desemprego. Caberá ao BC estimar qual é a taxa compatível com seu objetivo fundamental, a estabilidade de preços.
A autonomia do BC, tal como foi aprovada na Câmara, é um importante avanço institucional no Brasil.
*ECONOMISTA E DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES. FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA.
O ESTADO DE S. PAULO