A atividade econômica com desempenho melhor que o esperado nos primeiros meses do ano aliada à inflação e medidas de contenção de despesas propiciaram aos Estados um resultado primário considerado surpreendente, mesmo com a pressão de gastos com saúde em meio à pandemia de covid-19. O resultado primário dos 26 Estados e Distrito Federal somou R$ 56,95 bilhões de janeiro a abril deste ano, mais que o dobro dos R$ 26 bilhões de igual período de 2020. A fotografia é resultado de um descompasso “peculiar” no qual o crescimento das receitas foi mais acelerado que o das despesas. A arrecadação tributária dos Estados somou R$ 213,1 bilhões e avançou 17,3% nominais no primeiro quadrimestre deste ano contra iguais meses do ano passado. Embalada pela inflação e retomada da atividade, foi menos impactada pela pandemia do que se receava. Foi a arrecadação que puxou as receitas correntes, que avançaram 16% na mesma comparação.
Enquanto isso as despesas cresceram em ritmo bem menor. A taxa de aumento das receitas correntes foi duas vezes e meia a das despesas correntes, que cresceram 6,4%. A contenção foi obtida mesmo com a pressão maior das despesas na saúde, que cresceram 9,9%. Responsáveis por mais de 50% das despesas correntes dos Estados, os gastos com pessoal e encargos ficaram sob forte freio, com alta de apenas 0,5%, sempre na comparação nominal do primeiro quadrimestre deste ano em relação a igual período do ano passado. A contenção se explica em boa parte pela Lei Complementar 173/2020, a mesma que no ano passado estabeleceu transferências extraordinárias em razão da pandemia da União para Estados e municípios. Essa lei proibiu União, Estados e municípios de conceder reajuste salarial a servidores até 31 de dezembro deste ano, com exceções restritas.
O aumento superior a R$ 30 bilhões no resultado primário agregado dos Estados do primeiro quadrimestre de 2020 para este ano foi disseminado. Segundo dados entregues pelos governos estaduais à Secretaria do Tesouro Nacional (STN), somente o Maranhão, dentre os 27 entes, não teve aumento de resultado primário nesse período, embora tenha fechado os primeiros quatro meses de 2021 com superávit de R$ 1,46 bilhão. São Paulo teve um aumento de R$ 7,96 bilhões para R$ 15,12 bilhões de janeiro a abril de 2020 para igual período deste ano. Minas Gerais teve um salto de R$ 577,06 milhões para R$ 5,94 bilhões. Considerado um indicador do esforço dos governos estaduais na busca do equilíbrio fiscal, o resultado primário citado é o acima da linha, dado pelo saldo entre receitas e despesas, exceto as de natureza financeira. O saldo, portanto, é anterior aos pagamentos de juros da dívida. Os dados de resultado primário, receitas e despesas foram levantados pelo Valor dos relatórios de execução orçamentária entregues pelos Estados à STN. As comparações de gastos foram feitas com valores liquidados. Não foram consideradas as despesas intra-orçamentárias.
O economista Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) destaca que os dados do Banco Central mostram que os recursos em caixa dos Estados continuaram aumentando no início de 2021 em vez de reduzirem, numa situação contrária da que se esperava, dada a necessidade dos governos estaduais de fazer a gestão da crise sanitária neste início de ano
Entre os fatores que favoreceram as contas estaduais, diz ele, está a melhora da economia conjugada com a inflação. “Na questão da atividade econômica, tanto pelo indicador de atividade como pela inflação, há uma dinâmica muito favorável para as receitas. O deflator do PIB, exemplifica, roda muito acima do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). “E o índice de preços do PIB importa mais para a arrecadação do que o IPCA.”
Outra surpresa positiva foi o próprio crescimento, que veio “muito bom” no primeiro trimestre, diz Pires, referindo-se à expansão de 1,2% do PIB de janeiro a março de 2021 contra os três meses anteriores, na série com ajuste sazonal. O desempenho, lembra, levou a uma onda de revisões para o crescimento da atividade econômica deste ano da casa dos 3% para os 5%. Outro fator importante para os Estados é que a recuperação brasileira na pandemia tem sido muito focada em setores que estão na base de incidência do ICMS, o principal imposto dos governos estaduais.
Além disso, diz Pires, a inflação deve cair no segundo semestre. “O quadro, portanto, deve ser nesse período de alguma desaceleração dessa dinâmica mais favorável de receitas estaduais.” De outro lado, indica, teremos os governos querendo normalizar políticas, com a reabertura de escolas e retomada de investimentos, num cenário que deve levar a um encontro maior entre receitas e despesas.
Do ponto de vista de gastos de pessoal, Pires ressalta a importância da Lei Complementar 173, mas lembra também que em alguns Estados houve redução de gastos de pessoal em termos nominais, o que indica o efeito não somente da legislação mas também de reformas que foram feitas, como a administrativa e previdenciária, cujos resultados estão começando a aparecer. No Rio Grande do Sul, o resultado primário saiu de R$ 153,52 milhões no primeiro quadrimestre de 2020 para R$ 2,77 bilhões em igual período deste ano. Marco Aurelio Cardoso, secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul, diz que o bom desempenho da economia, ao lado de medidas que tornaram a arrecadação de ICMS mais eficiente, foi o fator determinante para o quadro e para o crescimento de 14% da receita estadual com impostos, taxas e contribuições de janeiro a abril de 2021 contra iguais meses do ano passado.
O PIB do Estado no primeiro trimestre deste ano, segundo o governo gaúcho, cresceu 4% contra os três últimos meses de 2020, após ajuste sazonal. Já no campo das despesas, ele destaca o efeitos das reformas previdenciária e administrativa sobre os gastos com pessoal, os mais representativos do Estados. O déficit previdenciário do Estado no primeiro quadrimestre deste ano, cita, foi de R$ 3,2 bilhões, R$ 600 milhões a menos que o de igual período do ano passado. Na mesma comparação, a despesa com pessoal e encargos ficou 2,2% menor.
Para o decorrer do ano, diz ele, o controle de gastos deve se manter na expectativa de avanço no ritmo de vacinação e com dúvidas que persistem em relação à recuperação do emprego, com a dificuldade de retomada dos setores mais intensivos em mão de obra, o que afeta renda e poder de compra. Para George Santoro, secretário de Fazenda de Alagoas, o resultado primário mostra uma situação peculiar de descasamento entre geração de receitas e execução de despesas. No Estado, o superávit primário cresceu de R$ 337,16 milhões do primeiro quadrimestre de 2020 para R$ 814,26 milhões em iguais meses deste ano. Nos primeiros meses do ano houve, diz ele, um aperto de contas em razão da preocupação em fazer frente aos gastos num ano em que a União não sinaliza por novas transferências extras. Também houve apreensão em relação às receitas. “Ninguém achava que a arrecadação teria esse resultado.”
Esse descasamento, porém, diz ele, será ajustado nos próximos meses, avalia. “É preciso lembrar que o crescimento de receitas também eleva os gastos vinculados constitucionalmente”, lembra, o que deve levar a um esforço de execução orçamentária na educação. Em Alagoas, o efeito receita ao lado de mudanças no Fundeb devem elevar em 30% os gastos com educação neste ano, contra 2020. Esse descompasso acontece também, diz ele, porque a inflação se acelerou mais do que se imaginava e chega mais rapidamente às receitas do que aos gastos. Nas despesas, o efeito da inflação chega à medida que se renovam contratos de obras e de serviços. No segundo semestre, diz, isso deve aparecer mais claramente. Para Santoro, a situação abre desafios para 2022, ano em que as receitas não devem crescer no mesmo ritmo deste ano e em que os governos estaduais enfrentarão a pressão por reajustes salariais e por investimentos.
Rogelio Pegoretti, secretário de Fazenda do Espírito Santo, compartilha da opinião de que deve haver cautela em relação ao horizonte de curto prazo. O superávit primário do Estado alcançou R$ 689,9 milhões de janeiro a abril deste ano, 87,5% a mais que o resultado de iguais meses de 2020. A receita tributária subiu 16%. Mas no cenário-base do governo capixaba nas projeções para o ano, diz, a arrecadação do Estado deve crescer perto de 5% nominais em 2021. No otimista, 10% Apesar da euforia do mercado hoje, o cuidado, diz ele, vem da dúvida sobre uma terceira onda de pandemia, os riscos políticos, a perspectiva de uma inflação longe da meta, com pressão sobre juros e consequentemente em seus efeitos sobre consumo e investimentos.
VALOR ECONÔMICO