Uma empresa do setor de construção obteve autorização da Justiça para ter suspensas as ações de cobrança enquanto negocia as dívidas com credores. Trata-se da aplicação do chamado “stay period”, um mecanismo típico das recuperações judiciais. Proferida pelo juiz Marcelo Sacramone, da 2ª Vara de Falências e Recuperações de São Paulo, a decisão é a primeira da qual se tem notícia no Estado. Esse precedente é importante especialmente para as companhias em situação de crise aguda, que precisam de uma interferência imediata, mas não têm ainda a documentação preparada para entrar com o pedido de recuperação judicial. A decisão de São Paulo é baseada na nova Lei de Recuperações e Falências, que entrou em vigor neste ano. O artigo 20-B da Lei nº 11.101, de 2005, introduzido pela Lei nº 14.112, de 2020, permite que o “stay period” seja concedido antes do ajuizamento do pedido de recuperação judicial.
Vale para as hipóteses em que a devedora demonstrar ao juiz que está tentando negociar o pagamento das dívidas com os credores. Sacramone frisa, na decisão, no entanto, que os prazos são diferentes: nas recuperações judiciais as ações de cobrança ficam suspensas por 180 dias; já para as negociações que ocorrem antes do processo, a nova lei prevê até 60 dias. Além disso, se posteriormente a empresa optar por entrar com o pedido de recuperação judicial, o prazo utilizado na fase pré-processual será descontado dos 180 dias, conforme consta no parágrafo 3º do inciso 4º do artigo 20-B. A decisão da Justiça de São Paulo beneficia uma empresa de construção que presta serviços, principalmente, para a administração pública. A companhia conseguiu suspender a exigibilidade de todos os créditos trabalhistas e quirografários (processo nº 1053832-87.2021.8.26.0100).
“Os investimentos secaram. Todos os recursos do poder público estão sendo direcionados à área da saúde. A companhia tem contrato com várias prefeituras e está sem receber”, diz Marcelo Alves Muniz, do escritório Keppler Advogados Associados, que representa a empresa no caso. “Isso gerou uma situação de crise. Há um endividamento considerável com os fornecedores de matéria-prima”, acrescenta. Com esses 60 dias, Muniz afirma, a intenção é que a empresa consiga reunir os principais credores e reestruturar o seu passivo, sem ser necessário entrar com o pedido de recuperação. “Estamos tentando evitar uma intervenção judicial mais abrupta”, frisa.
Antes da nova lei, segundo o advogado, as empresas em situação “mais calamitosa” acabavam ficando num limbo. O único caminho era a recuperação judicial. Só que a organização dos documentos contábeis e das certidões necessárias ao processo leva um certo tempo e os casos mais urgentes, que precisam de intervenção imediata, acabavam chegando incompletos ao Judiciário. “As empresas corriam o risco de ter o pedido negado por causa disso. E, quando acontecia, ficavam sem proteção e com o aviso ao mercado de que estavam em dificuldade. Gerava um efeito manada nos credores, que começavam a executar e a liquidar as garantias. A atividade entrava em colapso”, diz Muniz.
Existe pelo menos mais uma decisão no país permitindo a suspensão das ações de cobrança fora da recuperação judicial. Foi obtida, em março, pelo Figueirense, o clube de futebol de Santa Catarina. A decisão é assinada pelo juiz Luiz Henrique Bonatelli, da Vara Regional de Recuperações Judiciais e Falências de Florianópolis (processo nº 5024222-97.2021.8.24.0023). Especialista na área de insolvência, Juliana Bumachar, do Bumachar Advogados Associados, diz que houve, com a nova lei, um avanço muito grande em relação aos procedimentos pré-judiciais. “Mas precisa fazer uma análise caso a caso sobre qual será o mais apropriado e benéfico”, afirma. A advogada destaca que o processo de recuperação extrajudicial, por exemplo, ficou mais acessível com a nova legislação. “Pode ser muito positivo para a empresa. E, aqui, não se desconta o prazo concedido para suspender as ações de cobrança se, posteriormente, decidir entrar com o processo judicial”, compara Juliana Bumachar.
Tanto na recuperação judicial como na extrajudicial, o devedor reúne os seus credores para negociar. Elabora-se um plano de pagamento – geralmente com prazo de carência, descontos e o parcelamento dos valores. Se a maioria dos credores que está submetida ao processo aprovar tais condições, todos os outros ficam vinculados e receberão o devido da mesma forma. A quantidade de credores envolvida, no entanto, muda de uma modalidade para a outra. Na judicial, são submetidas todas as dívidas contraídas pela devedora até a data de início do processo, com exceção para débitos fiscais e valores com garantia fiduciária. Já na extrajudicial, a devedora escolhe os credores com quem deseja negociar – o que a permite, por exemplo, poupar os principais fornecedores, evitando se indispor com quem é essencial ao negócio. Essa negociação ocorre sem que haja interferência do Judiciário. Só depois de aprovado pelo grupo de credores, o plano de pagamento é levado para a homologação de um juiz.
Antes da nova lei, era necessária a concordância de 50% dos credores com quem a devedora escolheu negociar. Agora, se o devedor tiver um terço de aprovação do plano de pagamento, ele comunica o juiz e ganha um prazo de 90 dias para tentar convencer os demais – e chegar aos 50%. Durante esse período, as ações de cobrança contra ele ficam suspensas. Se mesmo depois desse prazo o devedor não conseguir a aprovação, ele ainda pode entrar com pedido de recuperação judicial e se valer do “stay period” de 180 dias – que, pela nova lei, pode ser renovado por mais 180.
VALOR ECONÔMICO