A presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi, afirmou ao Estadão/Broadcast que ampliar a multa contra empresas que praticam discriminação salarial contra mulheres pode prejudicar o caixa das companhias em um contexto já delicado devido à pandemia da covid-19. Defensora de uma discussão mais aprofundada do tema, ela reconhece que ainda há forte disparidade de gênero no mercado de trabalho e que a questão precisa ser atacada, mas sugere medidas “educativas” ou até mesmo estímulos tributários para combater a desigualdade salarial, em vez de punições.
Maria Cristina afirma já ter sentido na pele a discriminação de gênero quando, em uma sessão do tribunal, um ministro homem atravessou sua vez de falar para se pronunciar a respeito de um processo que estava sob responsabilidade dela. “Eu levantei o dedo e disse ‘pela ordem, a relatora sou eu'”, conta. Confira os principais trechos da entrevista.
Qual é a sua avaliação sobre o projeto que amplia as multas para empresas que praticam discriminação salarial contra mulheres?
A igualdade salarial entre homens e mulheres é um preceito de natureza constitucional. E a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), em diversos dispositivos, reproduz o princípio da igualdade. Então em hipótese alguma a lei permite a distinção de salário entre homens e mulheres. Não é um dever moral, é um dever jurídico, legal. Apesar disso, há casos estatisticamente comprovados de mulheres que ganham menos do que os homens pelo exercício das mesmas funções e atividades. O projeto de lei busca criar um mecanismo para viabilizar essa isonomia salarial e optou pelo caráter punitivo. Além da correção do desnível, deverá o juiz aplicar uma multa punitivo-pedagógica. Isso se o juiz constatar que a mulher desempenhava exatamente as mesmas funções, com a mesma competência, com a mesma perfeição técnica, mas com salário inferior. O professor José Pastore publicou recentemente um artigo e opina que este não é o momento de tratar de um assunto tão complexo de maneira açodada. Ele diz que o melhor seria discutir depois da pandemia, buscando soluções afirmativas mediante incentivos específicos. Eu tenho examinado essa questão, tenho lido diversas opiniões. Nos países mais avançados, como na Europa, Reino Unido, França e Espanha, eles optaram pela segunda alternativa, de não punir, mas sim estimular para que não se descumpra a lei.
E como a sra. vê a questão?
Penso que nós estamos vivendo um momento de crise econômica que não afeta o emprego sem antes afetar o empregador. Grande parte dos empregadores, não só pequenos e médios, mas também grandes, não têm muitas vezes receita para pagar despesas de fluxo corrente. Eles estão enfrentando dificuldades. É o momento de impor mais punição aos empregadores em geral? Uma multa elevada, de até cinco vezes o valor da diferença entre o salário de homem e de mulher na mesma função… Essa multa pode ter um efeito retroativo, nosso prazo prescricional é de cinco anos. As diferenças podem ser formalmente identificadas, mas muitas vezes exigem que você examine antiguidade no posto, titulação acadêmica, a produtividade, o próprio comprometimento de um e de outro, o tempo de dedicação que cada um empresta. Há fatores que, mais bem examinados, podem até justificar uma diferença que nem sempre pode ser classificada como discriminatória. Minha opinião é de que uma multa tão pesada como essa num momento de crise pode gerar maior insegurança jurídica, maior discriminação para a mulher, e o excesso de proteção pode gerar desproteção. Estamos já certos de que a isonomia é um dever moral, é uma norma obrigatória de estatura constitucional. Por que vamos, num momento de crise, criar outro mecanismo que, este sim, pode ser discriminatório? Acho que a questão envolve um pensamento numa amplitude maior, de criar estímulos ao invés de penalidades, e campanhas informativas de conscientização. Me parecem que são melhores alternativas do que a punição.
Que outras ações educativas poderiam amenizar essa discriminação contra mulheres?
A lei é para ser cumprida e o Poder Judiciário existe para fazer cumprir a lei. Antes da punição, que é uma última medida, temos de considerar outras prioridades, como o estímulo. Pode ser uma prevenção, pode ser um estímulo de natureza tributária. Essa me parece uma direção primária. Segundo, campanhas educativas. Quando se começou a falar em assédio moral, esse (tema) não está até hoje previsto especificamente na lei e a reparação por sua prática não deixa de ser aplicada por isso… muitas pessoas não sabiam bem o que era assédio moral. Muitos empregadores, por meio de seus prepostos, praticavam o ilícito sem saber. Hoje, há campanhas educativas, o próprio TST tem um manual ensinando o que pode ser caracterizado e como é possível impedir a sua prática. Penso que uma campanha educativa nesse sentido (contra discriminação salarial) também pode produzir bons resultados. Negociação coletiva, colocar expresso nos instrumentos coletivos, dependendo da categoria, maior ou menor multa. Hoje temos um prestígio tão grande pela negociação coletiva que podemos, por esse meio, estabelecer uma multa no mesmo valor de forma não genérica. Sem distinguir aquele que muitas vezes inadvertidamente pratica o ato, ou aquele que tem até uma justificativa e não consegue provar em juízo, acho que acaba gerando um prejuízo para a própria mulher nas situações em que o empregador pode escolher, que não é um concurso público.
O presidente Jair Bolsonaro afirmou que a sanção poderia eventualmente afetar a empregabilidade das mulheres. A sra. concorda?
Posso lhe dizer que o efeito de discriminar pode ser uma realidade. É possível, entre um candidato do sexo masculino ou um candidato do sexo feminino, discriminar a mulher na contratação. A divisão sexual do trabalho ainda está presente no mundo atual e se agravou agora por ocasião da pandemia. Apesar dessa igualdade legal, constitucional, quando se trata de redução de postos de trabalho, no período da pandemia as mulheres perderam mais empregos do que os homens. E as mulheres também passaram a ganhar menos não só pelo desemprego, mas também porque elas assumiram prioritariamente as atividades domésticas em geral, não só de cuidados da casa, da família, mas até com a educação dos filhos. Em razão disso elas ficaram mais sobrecarregadas e passaram a ter renda menor. O momento é mais desafiador hoje para as mulheres do que para os homens. Por isso que talvez possa uma multa elevada gerar um passivo, certa insegurança, e isso acabar prejudicando a sua contratação.
As empresas reclamam da possibilidade de insegurança jurídica, de haver questionamentos indevidos por igualdade salarial. Na semana passada, a economista Regina Madalozzo afirmou ao ‘Estadão/Broadcast’ que as empresas têm instrumentos para delimitar cargos e funções, afastando esse risco. Como a sra. analisa essa questão e como poderia ser a atuação da Justiça do Trabalho?
O fato de a multa prevista ser aplicada pela Justiça do Trabalho é um elemento favorável, porque o juiz profere uma decisão depois de examinar o caso concreto e as provas. E hoje nós temos meios de prova muito exatos, como as provas digitais. Quando eu refiro a questão da insegurança jurídica não é sob esse aspecto. A questão é quando existe uma possibilidade de justificativa que não é o quadro de carreira. A maioria dos empregadores são pequenos. Eles podem não ter condições de fazer uma boa prova, pode a própria jurisprudência ser alterada… A multa pode agravar a situação de quem agiu de boa-fé. Se pudermos dizer que a multa só vale para aquele que agiu de má-fé… A decisão (da Justiça) vai determinar a reparação do que foi pago a menor. Agora, essa multa punitiva a maior é que exige uma maior reflexão.
A sra. é a primeira presidente mulher da maior corte trabalhista do País. Como a sra. vê a disparidade de gênero no mercado de trabalho, sobretudo na pandemia, com queda na taxa de participação das mulheres? Ela existe ainda hoje e como mudar isso?
Existe. Não só na admissão, mas sobretudo na promoção. Quanto mais elevado na hierarquia, mais difícil é para mulher galgar um posto. Estou convencida de que a mulher precisa trabalhar mais do que o homem e se dedicar mais para receber o mesmo tratamento. Essa é uma realidade em todos os níveis. Eu própria sinto um pouco. Percebo que existe ainda uma resistência do homem em relação à mulher. Ela precisa mostrar que não tem qualquer tipo de impedimento de ser profissional integral, ela se esforça mais para ocupar seu espaço. Eu tenho dito que a forma de, não sei se resolver, mas equalizar efetivamente é a licença parental. Com a adoção da licença parental, em que se divide o tempo da licença, os homens têm estímulos para que eles se afastem para usufruir a licença parental e a mulher volta para o trabalho. Se puder ser adotada, será um grande avanço. Poderia equilibrar a balança.
A sra. disse que já sentiu essa diferença no tratamento. Poderia contar algum caso?
Alguns a gente não pode contar (risos). Mas vou contar um caso que tem a ver com a minha condição de ministra. Logo que eu entrei no tribunal, eu era relatora de um processo, houve uma discussão, e o advogado apresentou uma questão na tribuna. O colega, temeroso, penso eu, de que eu não soubesse resolver aquele imprevisto, aquela questão que o advogado suscitou, ele falou antes de mim, que era a relatora. E tentou dar a resposta. Eu levantei o dedo e disse ‘pela ordem, a relatora sou eu’. Ele veio ao meu socorro, mas eu fico a pensar: às vezes é porque acham que a mulher é frágil. Será que se fosse um homem o relator, haveria esse socorro? A mulher tem de mostrar, sobretudo, que ela não é um ser menor, indefeso. Ela é forte, sabe responder às questões, sabe se impor. A gente precisa se impor, porque é uma cultura que ainda remanesce no fundo e com amparo desses comportamentos.
O governo relançou o programa de redução de jornada e salário ou suspensão de contratos. Uma vez que essa medida já havia sido adotada em 2020, como a sra. avalia esse instrumento?
As medidas provisórias originais foram importantes para continuarmos com as nossas atividades e produziram bons resultados. O novo programa emergencial de manutenção do emprego e da renda reedita substancialmente a MP 936, com esse objetivo de permitir que os empregadores reduzam proporcionalmente jornada e salário de forma simplificada, por meio do acordo individual. Não se está desprestigiando a negociação coletiva, mas encontrando uma alternativa que responda de imediato. A primeira medida foi na época responsável pela manutenção de cerca de 9 milhões de postos de trabalho. Eu penso que o objetivo agora é justamente preservar os postos de trabalho. As dificuldades foram alavancadas pela pandemia. Por isso as medidas são importantes, preservando o valor do salário-hora.
O ESTADO DE S. PAULO