O clima de desconfiança entre as nações nos pós-guerra fez com que os instrumentos de espionagem tivessem um grande desenvolvimento tecnológico. Mesmo particulares podiam ter acesso a mecanismos que permitiam bisbilhotar seus vizinhos. Hollywood retratou bem essa tendência. “A Conversação”, “Chinatown” e “Todos os Homens do Presidente”, dentre diversos filmes da década de 70, tratam da paranoia que a espionagem trouxe e os problemas causados pela violação da intimidade das pessoas. A privacidade era tão sagrada na época que gerou o escândalo Watergate, levando o presidente Nixon a renunciar pela tentativa de colocar escutas na sede do Partido Democrata.
Com o fim da guerra fria e o surgimento do terrorismo, o direito sagrado à privacidade começou a ser mitigado. Percebeu-se que o excesso de sigilo foi fundamental para o ataque às Torres Gêmeas em 2001. Toda a legislação começou então a prestigiar a transparência. Não por coincidência, a Lei Complementar nº 105, que permitiu o compartilhamento de informação bancária dos contribuintes com a Receita Federal, é de 2001. O Supremo Tribunal Federal (STF), influenciado com esse novo ambiente mundial de radical transparência, prestigiou a mitigação da privacidade em diversos julgados. E, exatamente nesse momento histórico, as redes sociais e os smartphones com câmeras surgiram e fizeram com que as pessoas, por iniciativa própria, expusessem diariamente seus dados, intimidades, amigos, horários, gostos, compras e localização.
No ambiente tributário, a fiscalização a partir da troca de informações entre empresas e Fisco passa a ser o norte. São criadas diversas obrigações acessórias que desnudam o contribuinte. As declarações de imposto solicitam cada vez mais dados. Speds, ECF, ECD e notas eletrônicas são o novo direito tributário. Nos tribunais, as sessões de julgamento passam a ser transmitidas em tempo real. Na televisão, o maior sucesso é o Big Brother. Os países percebem, contudo, especialmente por meio dos casos Wilkileaks, Snowden e Cambridge Analytica, que esse excesso de transparência permite que os governos e as big techs possam, por meio de espionagem e algoritmos, identificar personalidades e antever comportamentos e perfis das pessoas. É a partir do julgamento na corte inglesa do caso Cambridge Analytica, consultoria que utilizou dados do Facebook e modelos matemáticos para influenciar plebiscitos e eleições ao redor do mundo, que surgem o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia – RGPD (ou GDPR em inglês) e logo em seguida a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira (Lei nº 13.709, de 2018).
A nova legislação é uma reação à violação da privacidade e traz regras para a utilização de dados de acordo com o devido processo legal e a partir do conhecimento e consentimento das pessoas. É o que afirmam textualmente os artigos 1 º e 2º da LGPD. Nessa trilha, é de se esperar que o novo regramento repercuta sobre a relação Fisco e contribuintes. Não é normal que CPFs e dados de milhões de brasileiros sejam vazados e negociados na internet, como rotineiramente noticiado. Também há uma expectativa de que os processos eletrônicos, administrativos e judiciais sejam mais sigilosos. Atualmente, por exemplo, qualquer pessoa pode acessar acórdãos de julgamentos administrativos, mesmo nos casos em que informações relevantes dos contribuintes estejam ali relatadas.
A nova lei se aplica às autoridades públicas (artigos 3º e 23) e prevê mecanismos para que o contribuinte saiba a razão da solicitação daquele dado e por quem e como ele está sendo utilizado (artigos 6º, 17 e 18). Além disso, a lei traz a obrigatoriedade de a autoridade nacional responsável pela fiscalização da LGPD enviar informe ao órgão público com medidas cabíveis para fazer cessar uma eventual violação. A lei também prevê, em seu artigo 42, a possibilidade de o contribuinte ajuizar ação indenizatória em caso de prejuízo pela má utilização ou vazamento de seu sigilo. As instituições privadas, por seu turno, também deverão ser mais cuidadosas em compartilhar com as fiscalizações dados que possuem de outros contribuintes, pois, em caso de envio de informações não exigidas pela legislação, poderão ser responsabilizadas. Já os Fiscos serão obrigados a ter cada vez mais cuidado com as pessoas que acessam aqueles dados fiscais sigilosos e o uso que lhes é dado. Em razão dos princípios da motivação, adequação e finalidade que permeiam toda a lei, as obrigações acessórias e intimações somente deverão exigir dados que sejam de estrito interesse da fiscalização. O contribuinte tem o direito de saber por que aquela informação é necessária e como será utilizada pela administração tributária.
Nos tribunais superiores, é de esperar, novamente, que o devido processo legal e a privacidade sejam prestigiados. É possível, inclusive, haver novo julgamento no STF sobre os limites do sigilo fiscal e a adequada motivação para sua quebra. No âmbito internacional, a troca de informações entre os países pode sofrer regulamentação mais rígida. Um país somente aceitará compartilhar informações de um cidadão se souber que o outro país cuida corretamente daqueles dados. Preocupada com isso, a nova lei disciplina a troca internacional de dados nos artigos 33 e seguintes. Portanto, se por um lado as administrações tributárias cada vez mais utilizarão o big data para desenhar sua política tributária e fiscalização, de outro, os contribuintes terão, a partir da LGPD, um forte instrumento para exigir que os seus dados sejam tratados com responsabilidade e sigilo.
Breno Kingma é sócio da área Tributária do Vieira Rezende Advogados
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