No momento em que vive a pior fase da pandemia, com recorde de vítimas e hospitais colapsando, o Brasil se vê na contramão do mundo. O País tem hoje a maior alta no número de mortes por covid entre as dez nações com mais óbitos pela doença, segundo análise feita pelo Estadão com base em dados do site Our World in Data, projeto da Universidade de Oxford.
Dos dez países líderes em mortes no mundo, oito registraram queda na média móvel de novos óbitos na última sexta-feira em comparação com o dado de 14 dias atrás. No mesmo período, essa média subiu 30,5% no Brasil, passando de 1.037 mortes diárias em 18 de fevereiro para 1.353 na sexta. O único outro país da lista que também registrou alta foi a Índia, mas em patamar muito inferior ao brasileiro (8,9%).
Enquanto isso, o Reino Unido, que também viveu o drama do surgimento de uma variante mais transmissível e da explosão de mortes em janeiro, acumula queda de 49,4%. Os Estados Unidos também registram algum alívio. No intervalo analisado, a média móvel de mortes baixou 8,7%. Também tiveram diminuição Espanha (-32,1%), Alemanha (-26,8%), México (-24,7%), França (-13%), Rússia (-9%) e Itália (-7,3%). A média de mortes em todo o mundo recuou 9,7% no período.
Entre os dez países, o Brasil tornou-se o primeiro em novas mortes por milhão de habitantes na quinta, superando os EUA. Na última sexta, o País era responsável por 15% de todos os casos e mortes do mundo (considerando a média móvel).
A falta de coordenação nacional para a resposta à pandemia, o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, medidas restritivas frouxas, baixa adesão da população e o surgimento de uma variante criaram uma “tempestade perfeita”, nas palavras de especialistas. “Temos alta mobilidade da população, resistência ao cumprimento de medidas de distanciamento, variantes mais transmissíveis, sistema hospitalar perto do limite e má gestão e comunicação por parte do governo. Aí se formou a tempestade perfeita”, diz o médico brasileiro Ricardo Parolin Schnekenberg, doutorando em Oxford e colaborador do Imperial College London.
Ele relata as diferenças na postura do governo britânico quando identificou uma nova cepa mais contagiosa. “Fecharam tudo em janeiro: lojas, restaurantes, igrejas, escolas. E tem punições pesadas para quem descumpre. Mas o que faz a maioria da população aderir não é a punição, mas o entendimento de que a situação é grave, e isso vem com mensagens consistentes do governo, coisa que o Brasil nunca teve”, diz.
Outra diferença é a velocidade da vacinação. O Reino Unido já tem 30,9% da população imunizada com ao menos uma dose – quase dez vezes mais do que o Brasil, com 3,5%. “Os Estados Unidos estão vacinando 2 milhões por dia e acabaram de contratar mais uma vacina, a da Janssen”, diz Marcia Castro, chefe do departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard. “O Brasil poderia vacinar rápido também. Tem experiência e conhecimento, só faltaram as doses”, completa.
A gestão Bolsonaro também falhou ao ignorar alertas de especialistas sobre o risco da nova onda avassaladora. “A taxa de queda dos casos começou a desacelerar e virou estabilização em outubro, o que já indicava reversão de tendência. Em novembro começamos a ver o aumento”, diz o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, da rede Análise Covid-19.
Ele monitora diariamente os principais indicadores da pandemia no País e, em 17 de dezembro, publicou nas redes sociais análise que mostrava que um “tsunami” se aproximava. Ele e outros especialistas refutam o argumento de que o surgimento inesperado da variante levou ao cenário atual. “A própria existência da variante se deu por causa do desrespeito das medidas de distanciamento. Fica parecendo que estávamos fazendo tudo certo e demos o azar de ter uma variante que acabou com nossos esforços. Provavelmente, não haveria variante se estivéssemos fazendo um bom controle”, diz Schrarstzhaupt.
Ministério diz que repassou dinheiro para Estados
Questionado, o Ministério da Saúde disse manter esforço constante para garantir atendimento em saúde, tendo repassado aos Estados R$ 33,2 bilhões para ações contra a covid-19. A pasta ressaltou que Estados e municípios têm autonomia para definir medidas locais.
O ministério informou ainda que, como prevenção e controle, preconiza o “uso de máscaras, bem como evitar aglomeração, distância de pelo menos 1 metro entre as pessoas, etiqueta respiratória e higienização das mãos”.
O órgão afirmou que está trabalhando para atender a todos no plano de vacinação. Até agora, informa a pasta, mais de 17 milhões de doses já foram distribuídas e a previsão é de que outras 29 milhões sejam entregues ainda em março.
Queda de mortes pode demorar 5 semanas
O abismo entre o Brasil e os demais países no controle da pandemia deve aumentar nas próximas semanas, principalmente se o País seguir com uma campanha de vacinação lenta e se os governos estaduais recuarem rapidamente das quarentenas mais rígidas que ganharam espaço nos últimos dias.
Isso porque, com um patamar ainda alto de casos, o País deve levar muito tempo para reverter a tendência de aumento, enquanto outras nações mantêm as infecções em baixa com reaberturas cautelosas e vacinação em massa.
“Mesmo se tivermos um lockdown nacional rigoroso no Brasil, ainda demoraríamos de três a quatro semanas para ver uma queda nas hospitalizações e cinco a seis semanas para ter uma diminuição das mortes”, opina Ricardo Parolin Schnekenberg, doutorando da Universidade de Oxford e colaborador do Imperial College London nos estudos sobre covid-19 no Brasil.
Ele conta que, no Reino Unido, mesmo com o número de novos óbitos em queda há mais de um mês, o lockdown começará a ser flexibilizado somente nesta semana, com a reabertura das escolas a partir de amanhã. Comércios não essenciais serão permitidos apenas em abril. Já restaurantes e pubs poderão reabrir em maio.
“É um processo lento e cauteloso para que o número de casos tenha uma redução grande e qualquer surto seja mais facilmente controlado, e também para que dê tempo de mais gente ser imunizada”, afirma o médico brasileiro sobre a estratégia adotada pelo país.
Marcia Castro, professora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, concorda que uma melhora nos indicadores só será permitida em semanas. “A gente chegou a uma situação em que nada vai fazer o problema ser resolvido rápido. Para resolver rápido, tínhamos de ter começado antes. Mas quanto mais demorarmos para fazer algo, mais vidas perderemos. As medidas restritivas e a ampliação da vacinação, portanto, são para ontem”, afirma.
Para Schnekenberg, é também urgente no Brasil que ocorra a oferta de socorro a pessoas e empresas em situação financeira difícil, justamente por conta dos efeitos da pandemia alongada. “Não tem como exigir o cumprimento dessas restrições sem um auxílio financeiro tanto para trabalhadores quanto para empresários.”
Em 2020, o auxílio emergencial foi pago a trabalhadores informais, desempregados e beneficiários do Bolsa Família. Com o agravamento da pandemia, há pressão por uma nova rodada de benefícios que ainda não foi definida.
O ESTADO DE S. PAULO