O começo do fim (Ana Carla Abrão)

O dia D foi um domingo, dia 17 de janeiro de 2021. Um dia D de Doria e de Dimas quando, poucos minutos após a aprovação pela Anvisa para uso emergencial, a primeira dose da Coronavac, fruto da parceria entre o laboratório Sinovac e o Instituto Butantã, foi aplicada na enfermeira Monica Calazans. Isso não é pouco e justifica a emoção que tomou conta do Brasil.

Após 11 meses de pandemia, acumulam-se números trágicos. Já são mais de 200 mil brasileiros mortos por covid-19, a expectativa de queda do PIB gira em torno de 4,5% para 2020 e já temos 14 milhões de trabalhadores desempregados no País.

Numa visão setorial, o turismo foi dizimado, com impacto relevante em diversas regiões do País; atividades culturais e artísticas foram interrompidas e agora se esforçam para ressurgir quase que das cinzas; o setor de serviços minguou – em particular nas áreas de alimentação e alojamento, mas também em muitas outras, deixando um rastro de empresas fechadas e causando desesperança em relação ao futuro. Companhias aéreas enfrentam dificuldades e se veem ao sabor das ondas da pandemia, o comércio teve de se reinventar para sobreviver e a indústria sofre para se reerguer.

O pior nesse campo veio com os milhões de pessoas que engordaram as já tristes estatísticas de pobreza e extrema pobreza enquanto os afortunados – que mantêm sua renda e sua casa – tiveram de se adaptar à ausência de fronteiras entre casa e trabalho e lidar com a angústia do isolamento social. Crianças e jovens fora das salas de aula compõem o triste legado que ficou desse período e que exigirá muito esforço para ser revertido.

Na saúde, o SUS – Sistema Único de Saúde – mostrou sua força, mas também escancarou as décadas de má alocação de recursos, da burocracia excessiva e, acima de tudo, dos grotescos erros de gestão que acompanharam o negacionismo de um governo federal que ainda hoje desdenha da pandemia, insiste em prescrever tratamentos sem comprovação científica e fez pouco caso da vacina. O resultado? Além do trágico saldo de mortos, o caos representado por Manaus e a tragédia, pela segunda vez, anunciada.

Há novas variantes do vírus, que se espalham mais rápido e fazem voltar o pesadelo dos postos de saúde e hospitais lotados. Ao mesmo tempo, jovens – e nem tão jovens – se aglomeram numa manifestação de fadiga e de irresponsável resistência contra o isolamento social. Somos jovens, aguentamos, acreditam eles. Mas contribuem para que o vírus continue se disseminando e levando embora mais e mais pessoas. Foram nove meses para que o mundo atingisse 1 milhão de mortos por covid-19. Nem sequer outros quatro meses completos foram suficientes para acumularmos o segundo milhão de óbitos.

Recursos públicos e privados foram mobilizados de forma inédita para combater os impactos da pandemia. No Brasil, o auxílio emergencial levou dinheiro ao bolso de cidadãos vulneráveis (e também a muitos outros nem tão vulneráveis) em valores que totalizaram mais de R$ 250 bilhões. Medidas de liquidez adotadas pelo Banco Central atingiram a casa do trilhão de reais se considerarmos aí a soma dos estímulos nas áreas de crédito e as alterações nas regras de depósitos compulsórios e de requerimentos de capital.

Houve ainda os programas governamentais voltados à manutenção de empregos, além dos programas especiais que o BNDES desenhou e operou. No privado, nunca se doou tanto. Desde programas estruturados como os de tantas grandes e médias empresas, passando por mobilizações expressivas e coordenadas como a do governo do Estado de São Paulo e por iniciativas individuais, volumes se somaram num protagonismo inédito da sociedade civil brasileira. E assim passamos esses onze meses de 2020 e deveremos passar alguns outros em 2021.

Desde o último domingo, com a aplicação da primeira dose da vacina contra a covid-19, uma luz de esperança se acendeu, abrindo caminho para que a discussão sobre recuperação econômica e a volta a alguma normalidade ganhasse concretude no Brasil. Graças a meses de planejamento, investimentos e mobilização do setor privado pelo governo do Estado de São Paulo – que também assumiu os riscos de eventuais reveses sempre presentes nas apostas científicas – tivemos a primeira boa notícia do ano.

Sabemos que a vacina é o único ponto de partida para uma recuperação econômica consistente. É também a partir dela que se pavimentará a trilha de reversão de parte das nossas mazelas sociais tão agravadas pela pandemia. Além disso, será a vacina que nos permitirá, finalmente, retomar uma discussão de curso e rumo para um País à deriva e em breve celebrar o fim dessa pandemia que tanto nos tirou e tanto fez sofrer.

A Coronavac nos trouxe esperança, mas também reforçou a lição de que foco, persistência e liderança são fundamentais na gestão pública. Vidas perdidas não voltam, mas a perspectiva de que outras serão poupadas é um alvissareiro sinal de que o fim desse trágico pesadelo – em todas as suas dimensões – começa a se delinear no horizonte.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

O ESTADO DE S. PAULO

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