Zeina Latif: Nunca estivemos tão perto e tão longe da reforma tributária

Reformas estruturais custam a se viabilizar no Brasil. Além do natural receio de mudanças em um país onde as regras do jogo são modificadas com frequência e sem critérios claros, há grande resistência de grupos organizados que buscam preservar benefícios nunca assumidos como privilégios. Muitas vezes, interditam o debate público ao se valerem de análises equivocadas, mas com apelo popular.

Assistimos a esse filme, por décadas, no debate da reforma da Previdência. Foi necessário flertar com o colapso para o debate avançar.

Estamos percorrendo o mesmo trajeto com a reforma tributária.

Por um lado, nunca estivemos tão próximos dela. O setor produtivo agora reconhece que o crescimento sustentado virá da remoção de entraves estruturais, e não de Selic baixa e dólar alto. A heterodoxia tradicional não tem mais a mesma ressonância entre empresários e políticos. Já os fiscos estaduais, sempre temerosos de perder receita, agora veem a reforma como o caminho para recuperar a arrecadação perdida por benefícios tributários concedidos em meio a uma insustentável “guerra fiscal” e para ajustar os tributos às mudanças da estrutura produtiva. O ICMS está obsoleto diante do crescimento do setor de serviços.

Por outro lado, a reforma parece ainda distante. Cada pedacinho da complexa legislação tributária tem dono. Enquanto isso, há uma indústria de contencioso tributário (de 73% do PIB, segundo pesquisadores do Insper), com um exército de advogados tributaristas, especializados em lidar com o cipoal de regras e a mão forte dos fiscos, para defender os interesses de seus clientes, legítimos ou não, e não para defender um sistema mais eficiente e justo.

Todos perdem com o medíocre desempenho socioeconômico do País. O problema é que, no curto prazo, há ganhadores com a manutenção do status quo. Assim, avançar com uma reforma de maior envergadura, como a proposta que visa à isonomia entre os setores, depende muito da capacidade de enfrentamento do Executivo, algo pouco provável neste governo.

Para alguns analistas, a crise atual demandaria, por um lado, aprovar uma reforma tributária para combater a desigualdade e, por outro, afastar as propostas de criação do IVA (imposto sobre valor adicionado, que consolida os tributos federais PIS, Cofins e IPI, o estadual ICMS e o municipal ISS, na proposta da Câmara) para impedir eventuais perdas ao setor produtivo.

Há problemas nos dois argumentos. Começando com a questão distributiva, o tema é mais complexo do que parece. Não há fórmula mágica para uma tributação justa socialmente, ainda mais no Brasil, com estrutura cheia de distorções.

Seguem alguns exemplos: elevar as alíquotas do imposto de renda para os mais ricos implica ampliar a diferença em relação ao tratamento privilegiado a profissionais liberais na pessoa jurídica, que pagam bem menos impostos; elevar a tributação sobre patrimônio pode estimular a fuga de recursos do País; e aumentar o peso de impostos diretos (como o IR), mais progressivos, poderá resultar em menor crescimento econômico.

Um bom começo seria eliminar distorções tributárias, por exemplo, revendo as “pejotinhas”, as deduções no IR ou mesmo as polêmicas desoneração das cesta básica e isenção de livros, que acabam beneficiando também os mais ricos.

Importante citar que a melhor forma de promover a igualdade de oportunidades é pela boa alocação de gastos públicos, e menos por tributação. Podemos, por exemplo, restringir a gratuidade da universidade pública e, como propõe o economista José Márcio Camargo, criar um sistema de bolsas para o ensino básico.

Sobre o suposto momento inadequado para o IVA, o argumento tem falhas. Para começar, as propostas em tramitação no Congresso têm prazo dilatado para implementação. Mais importante, o IVA tributa todos os setores igualmente, o que implica distribuir melhor o peso atual da carga tributária. A indústria de transformação sofre com a carga de 45%, segundo estudo da Firjan, e tem participação de 10% no PIB, ante 23% e 52%, respectivamente, para os serviços. Deverá haver alívio relevante para a indústria e peso “diluído” para os serviços, em um sistema mais simplificado e previsível. O grosso das empresas de serviços não será afetada, pois recolhem pelo Simples ou são MEI (microempreendedores individuais), mas pesam muito pouco no PIB.

Há ainda outras características importantes do IVA. Primeiro, não aumenta a regressividade tributária. Pelo contrário, pois taxar mais os serviços implica tributar os mais ricos, cujo consumo é proporcionalmente maior, como aponta o economista Bernard Appy.

Segundo, o IVA poderá estimular a formalização da economia, porque, a cada etapa do processo produtivo, as empresas desejarão recuperar créditos tributários (imposto incidente nos elos anteriores na cadeia).

Terceiro, o IVA não incide sobre o investimento das empresas e as exportações.

Reforma perfeita não existe, até porque os princípios de um bom sistema tributário são, por vezes, conflitantes entre si. Cabe aos especialistas apontar a boa técnica, de forma isenta, e pavimentar o caminho para a classe política buscar soluções consensuais e mais compatíveis com os atuais valores e anseios da sociedade.

*CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP

O ESTADO DE S. PAULO

Compartilhe