Na última terça-feira, 29, o psicólogo e ator João Paulo Lima, de 28 anos, recebeu a notícia que muitos esperam: foi aprovado em um processo seletivo de uma fintech para trabalhar no setor de atendimento ao cliente. A busca começou em abril deste ano, quando precisou deixar o emprego na Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo.
João Paulo, que possui paralisia cerebral e é deficiente físico, esteve até a última terça no grupo das quase 25 mil pessoas com deficiência e reabilitados que foram desligadas dos seus trabalhos formais no primeiro trimestre deste ano. Para conseguir o emprego, além de superar as dificuldades convencionais que pessoas com deficiência (PCD) enfrentam no mercado, ele também precisou superar uma barreira estatística: o número de PCDs e reabilitados desligados no País atualmente é maior que o número de contratações.
As informações são do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que de dezembro a abril tem registrado mensalmente um saldo negativo de admissões comparadas às demissões. O número contrasta com a categoria de pessoas sem deficiência, cujo índice se manteve positivo desde janeiro de 2021, apesar de o desemprego atingir 14,8 milhões de brasileiros.
Os dados ainda sinalizam que o saldo para contratações de PCDs são negativos na maioria das atividades econômicas e em todos os tipos de deficiência e nos diferentes graus de instrução.
“A gente costuma dizer que, quando esse tipo de situação ocorre, o atributo ‘pessoa com deficiência’ está se sobrepondo aos outros atributos, como econômico e escolaridade”, afirma o economista Fábio Bentes, da Confederação Nacional do Comercial de Bens, Serviços e Turismo.
Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, diferentes motivos explicam a menor quantidade de admissões em relação aos desligamentos de deficientes nos últimos meses.
Instabilidade no emprego
Ivone Santana, chefe-executiva da Rede Empresarial de Inclusão Social (Reis), acredita que a queda na absorção de pessoas com deficiência a partir de janeiro pode estar relacionada ao fim da validade da Lei 14.020, de julho de 2020, que vetava a demissão de PCD sem justa causa até 31 de dezembro do ano passado. A lei deixou de ser aplicada a partir de 2021 por estar submetida ao Decreto Legislativo nº 6, que reconhecia estado de calamidade pública no País até dezembro.
A lei, de fato, freou em 2020 as demissões de PCDs e reabilitados. Entre agosto e novembro, o Caged registrou mais admissões que desligamentos. Em janeiro de 2021, sem mais a vigência da lei, o número de desligamentos voltou a acontecer.
Ivone lamenta que as pessoas com deficiência ainda precisam superar o despreparo de gestores e a falta de uma cultura de acessibilidade nas empresas “que não estão comprometidas com a inclusão”. Nelas, segundo a diretora da Reis, “as pessoas com deficiência são as primeiras a serem demitidas”.
José Carlos do Carmo, auditor fiscal da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo, também reconhece e identifica que “a PCD não tem estabilidade no emprego”. Carmo é responsável por fiscalizar se as empresas cumprem a Lei de Cotas, que prevê a contratação obrigatória de PCDs e reabilitados a partir da quantidade de funcionários que uma organização possui.
“Contratar não se trata de benevolência, mas de uma obrigação legal. É necessário que haja uma real política de valorização da diversidade”, afirma o auditor.
As pessoas com deficiência ainda estão em desvantagens em tempos de pandemia. Por estarem dentro de grupos de risco, elas se tornam alvo de demissões uma vez que não podem trabalhar presencialmente ou podem gerar encargos trabalhistas se forem contaminadas.
Para João Paulo Lima, “se de um modo geral o custo para manter um funcionário com deficiência é maior por uma questão da acessibilidade, o empregador vai querer mandar esse funcionário embora porque, se ele já é grupo de risco, imagina se ele pega covid?”, reflete.
Funcionários ‘caros’
A falta de acessibilidade dentro das empresas também são razões que os empregadores dão para não admitirem PCDs ou para optar pela contratação apenas daqueles que exigem pouca adaptação.
A pesquisadora Maiza Hipólito, que investigou a inserção das pessoas com deficiência no setor industrial para sua tese de doutorado, identificou em seus estudos que parte das empresas, sobretudo as mais antigas, têm dificuldades para adaptar o espaço físico e eliminar as barreiras arquitetônicas.
Os motivos prejudicam não somente a inserção, mas também a manutenção dos PCDs nas empresas. O problema se agrava, de acordo com a pesquisa, quando muitas áreas na indústria apresentam riscos maiores aos funcionários.
“Na mineração, tem muitas atividades para adaptar por conta de aparelhos grandes e pesados. Em uma das mineradoras que eu entrevistei, os prédios são muito antigos e difíceis de promover a acessibilidade”, explica Maiza.
Preconceito e capacitismo
Em meio a várias barreiras que dificultam o acesso da pessoa com deficiência ao mercado de trabalho, uma delas é a principal, segundo a opinião unânime dos entrevistados: o preconceito. “Tecnicamente chamamos de ‘barreira atitudinal’ e que representa a maneira preconceituosa como as pessoas com deficiência são tratadas”, explica José Carlos Carmos.
Para Ivone Santana, que também é diretora do Instituto Parités, responsável por promover a cultura de inclusão de PCDs em empresas, “ainda enfrentamos uma sociedade extremamente capacitista e que o preconceito e o despreparo de gestores, das empresas e a falta de acessibilidade ainda prevalecem”.
O capacitismo é o nome dado ao preconceito que atinge pessoas com deficiência, que são julgadas sob o estereótipo de não serem capazes de realizar determinadas tarefas.
As empresas alegam que, muitas vezes, mesmo oferecendo vagas, não encontram pessoas para preenchê-las, pois acreditam que elas não têm as qualificações ou requisitos necessários para os cargos, como por exemplo ensino superior completo”, afirma a psicóloga Paolla Vicentim, líder de projetos da ASID (Associação Social para Igualdade de Diferenças).
Maiza Hipólita também contesta o argumento das empresas sobre a qualificação e o nível educacional dos profissionais. “Muitos empregadores afirmam que as pessoas com deficiência não são qualificadas. Mas por que a qualificação não pode acontecer no ambiente de trabalho?”, questiona a pesquisadora.
Os dados do Caged apontam que mesmo os PCDs e reabilitados com ensino superior também têm sofrido mais desligamentos do que contratações desde janeiro de 2020. Enquanto que 6.422 pessoas foram contratadas, 7.948 foram desligadas no período.
“Sou cognitivamente hábil, eu estudei, trabalhei para isso e quero um emprego à minha altura, sem desmerecer qualquer tipo de profissão”, diz João Paulo Lima, que além da graduação em Psicologia, também é tecnólogo em teatro. “Mas, assim como qualquer outro tipo de pessoa, sendo deficiente ou não, a gente almeja a nossa ascensão social.”
O ESTADO DE S. PAULO