Uma rede varejista de farmácias do Rio Grande do Sul conseguiu, por meio de um argumento pouco utilizado na Justiça, anular um auto de infração lavrado pela Receita Federal. A decisão, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que atende a região Sul, aborda o chamado “período da graça” – tempo em que o contribuinte pode pagar o que deve sem sofrer alguma sanção. O caso transitou em julgado (não cabe mais recurso) no dia 29 de outubro. A decisão é considerada inédita por advogados. O instituto ou período da graça está previsto no artigo 47 da Lei Federal nº 9.430, de 1996.
De acordo com o dispositivo, o contribuinte submetido à fiscalização da Receita poderá pagar em até 20 dias, a contar da data de recebimento do termo de início de fiscalização, os tributos já declarados, com os mesmos efeitos da denúncia espontânea. Ou seja, sem as multas de mora e de ofício. No caso, a rede de farmácias, ao aderir à Medida Provisória (MP) nº 601, de 2012, que trouxe a chamada desoneração da folha de salários, passou a recolher a contribuição patronal do INSS sobre a receita bruta. A MP, de 28 de dezembro daquele ano, contudo, não foi aprovada pelo Congresso Nacional e perdeu sua validade no dia 3 de junho de 2013.
A rede, porém, continuou recolhendo indevidamente sobre a receita bruta até dezembro de 2014, apesar de declarar que estava recolhendo sobre a folha de salários nas Guias de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social (GFIPs). No dia 18 de janeiro de 2017, foi notificada sobre o Termo de Instauração de Procedimento Fiscal aberto pela Receita Federal. Em 6 de fevereiro, a empresa recolheu a diferença entre os valores, em um total de R$ 1,1 milhão, e retificou as guias no dia seguinte, valendo-se do instituto da graça. Ainda assim foi mantida pela fiscalização a autuação de cerca de R$ 1,1 milhão, com correção e multa de ofício de 75% – hoje seriam cerca de R$ 2,4 milhões. Por isso, o contribuinte resolveu levar o caso à Justiça
Para os advogados que assessoram a farmácia, Víctor Arns Passos e Bruno Silva de Oliveira, do escritório Arns & Silva de Oliveira Advogados Associados, seria o caso de aplicar o instituto da graça porque houve a declaração do débito na GFIP sobre a folha de salários e apenas um pagamento a menor, como se ainda fosse desonerada. Em primeira instância, o juiz extinguiu a ação sem a análise do mérito por entender que não era a via adequada. Na 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, contudo a empresa ganhou por maioria, após julgamento estendido. O relator tinha sido contrário ao contribuinte por entender que não se sustentaria a tese de que o pagamento realizado em 7 de fevereiro de 2017 abrangeu valores já declarados, uma vez que houve a retificação das GFIPs após o início da ação de fiscalização. Contudo, foi vencido.
O desembargador Rômulo Pizzolatti abriu a divergência ao entender que o pagamento efetuado é satisfatório à extinção do crédito tributário e para declarar a nulidade do auto de infração. Foram então dois votos a um a favor do contribuinte, o que levou ao julgamento da turma estendida, onde Pizzolatti foi seguido pelos demais desembargadores, em dezembro de 2018. (Processo nº 5004616-89.2017.4.04.7112/RS) A Fazenda Nacional entrou com embargos de declaração no TRF, que foram negados. Depois recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, decidiu, no dia 20 de agosto, não conhecer do recurso especial por envolver reexame de provas. O processo transitou em julgado no dia 29 de outubro.
Segundo o advogado Víctor Arns Passos, a decisão traz um importante precedente sobre o instituto da graça, que tem sido pouco utilizado, mas que pode representar uma grande economia para empresas que declararam o débito e que, por algum motivo, não efetuaram o pagamento. De acordo com Passos, outras farmácias que passaram por essa situação acabaram optando por entrar em parcelamentos. O advogado Leo Lopes, do escritório FAS Advogados, destaca que a maior parte dos casos que tratam do instituto da graça está no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que em geral analisa se o respectivo tributo poderia ser considerado “já declarado” na abertura da fiscalização, como exige o artigo 47 da Lei nº 9.430. Para o advogado, o julgamento do TRF da 4ª Região foi correto, tendo em vista que o Fisco já possuía as informações necessárias para a cobrança do tributo que buscava fiscalizar.
O uso do instituto da graça é raro, segundo Carlos Navarro, do escritório Galvão Villani Navarro, porque envolve um débito declarado e não pago que deve ser quitado em até 20 dias após o início da fiscalização. “Normalmente quando uma empresa declara e não paga é porque ela não tem uma posição de caixa favorável. Depois ela acaba quitando na época que tem o caixa e não necessariamente coincide com o momento de uma eventual intimação fiscal.” Procurada pelo Valor, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) não retornou até o fechamento da edição.