São inquietantes as notícias que chegam no início de novembro desta inacabável e insidiosa pandemia: as eleições norte-americanas podem consolidar tendência recente de renúncia à cooperação internacional e estimular o populismo e o desrespeito às regras democráticas; já é certo que os Estados Unidos estão profundamente divididos, num clima que pode evoluir para confrontos violentos, e têm um bizarro sistema eleitoral, mormente se comparado ao moderno sistema brasileiro; a Europa está sofrendo com a segunda onda da covid-19 e atentados terroristas motivados por intolerância religiosa; e inexiste perspectiva concreta para distribuição, em curto prazo, de vacina contra a doença que está infelicitando a humanidade, especialmente nos países pobres.
Aqui, insistimos com polêmicas infantilizadas ou incompreensíveis, como a obrigatoriedade ou não de aplicação de uma vacina que, infelizmente, ainda não está disponível. As redes sociais são utilizadas por autoridades, de forma banal, para emitir bisonhos comentários sobre fatos corriqueiros ou proferir xingamentos a adversários do dia. As eleições municipais são um tedioso espetáculo de promessas inviáveis e de disputas por rendosos cargos políticos. Definitivamente, não estamos bem.
Parece que ninguém está levando a sério o aumento do desemprego e da pobreza, a crise fiscal dos Estados e municípios, a insolvência de empresas, a instabilidade do câmbio, as ameaças inflacionárias, a necessidade de proteção para os vulneráveis, a possibilidade de uma segunda onda da pandemia.
Não se conseguiu promover um debate consistente sobre esses temas e outros associados à crise sanitária, ao contrário do que está sendo feito em muitos países.
Na Alemanha, a chanceler Angela Merkel, com a serenidade habitual, adverte que o inverno será duro e difícil, e pede aos compatriotas que assumam conduta solidária e empática. Na Nova Zelândia, a primeira-ministra Jacinda Ardern lembra que seu vitorioso enfrentamento da pandemia é fundado na firmeza e na antecedência.
O Congresso nem sequer conseguiu aprovar a Lei de Diretrizes Orçamentárias e instalar a comissão mista para tratar do Orçamento de 2021.
Algumas iniciativas parlamentares para mitigar os rigores da crise ainda não lograram prosperar, como o Projeto de Lei n.º 3.566/2020, apresentado pelo deputado André de Paula, na Câmara dos Deputados, tratando da indispensável moratória tributária para as micro e pequenas empresas, e o Projeto de Lei n.º 578/2019, apresentado pelo senador Álvaro Dias, no Senado, que propicia a conversão da Bolsa Família em emprego, sem custo fiscal.
É indispensável que sejam apresentadas mais iniciativas voltadas para arrostar a crise, especialmente pelo Executivo.
Em lugar disso, persiste a pretensão de aprovar uma ampla reforma tributária, com severos impactos sobre preços, setores e entes federativos, com base em reuniões por videoconferência, apresentações em PowerPoint e divulgação de exercícios econométricos que pretendem projetar um futuro longínquo a partir de suposições precárias.
Quando se retira o véu das agendas ocultas, percebe-se que se pretende, por exemplo, reduzir a carga tributária de geladeiras e automóveis de luxo para aumentar a de livros, mensalidades escolares e consultas médicas, em nome de uma enganosa e regressiva alíquota única.
A existência de um número grande de alíquotas efetivas no ICMS não pode ser pretexto para instituição de uma alíquota única. Vedação à implantação de regimes especiais e à redução de base de cálculo já representaria uma enorme simplificação.
Debates sobre as propostas estão interditados, limitando-se a exposições formais de representantes setoriais, ouvidas com a indiferença de um frade de pedra. Negociações, quando existem, são operadas em ambiente privado, traduzindo uma peculiar forma de privatização da reforma tributária.
O Estado não pode demitir de si a responsabilidade de conduzir reformas de tal envergadura, em que se exigem imparcialidade e prevalência do interesse público.
*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)