Ministros consideram que a prática é uma forma de terceirização lícita
Por Adriana Aguiar — De São Paulo
Ganhou força no Supremo Tribunal Federal (STF) um movimento de empregadores para validar a contratação como pessoa jurídica (empresa) de trabalhadores que, normalmente, exercem atividades intelectuais e são considerados hipersuficientes. Os ministros aceitaram a tese de que essa prática é uma forma de terceirização lícita.
As decisões mais recentes envolvem advogados, médicos, corretores de imóveis e prestadores de serviços na área de https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpg. Esses casos estão sendo levados ao STF por meio de reclamações contra decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e da segunda instância.
Nos pedidos, as empresas alegam descumprimento de decisões do Supremo, em repercussão geral, sobre a possibilidade de terceirização ampla e irrestrita e de prestação de serviços via pessoa jurídica (ADPF 324, ADC 48, ADI 3.961, ADI 5.625 e RE 958.252).
Atualmente há na Justiça do Trabalho 1.067 ações com os termos “pejotização”, “empregado” e “hipersuficiente”, em um valor total de R$ 788 milhões, segundo levantamento da plataforma de jurimetria Data Lawyer. São contados apenas os processos eletrônicos ajuizados desde 2014 e sem segredo de justiça. Em geral, nesses casos, os valores envolvidos são altos – média é de R$ 740 mil.
O termo hipersuficiente foi introduzido pela Lei da Reforma Trabalhista (nº 13.467/2017). Seriam trabalhadores com melhores condições para entender e negociar o contrato de trabalho.
A previsão está no parágrafo único do artigo 444 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Pelo dispositivo, as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas, nos casos em que envolver trabalhador portador de diploma de nível superior e com salário igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (R$ 14.174,44).
No Judiciário, esses profissionais têm alegado, porém, que teriam sido forçados a aceitar a contratação como pessoa jurídica. Pedem as verbas relativas a empregados com carteira assinada – 13º salário, férias, aviso-prévio indenizado, depósitos e multa de 40% do FGTS, além dos pagamentos das contribuições previdenciárias.
Por meio de reclamações, esses casos têm sido levados às mãos dos ministros do Supremo. Eles têm normalmente cancelado os acórdãos e determinado o retorno desses processos ao tribunal de origem para novo julgamento, que deve seguir a jurisprudência firmada pelo STF.
O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, concedeu duas liminares, publicadas recentemente, para admitir a chamada “pejotização”. Uma envolvendo um prestador de serviços da incorporadora e construtora Cyrela e outra de um prestador de serviços autônomo da Educo Serviços, franqueada da Totvs, da área de https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpg.
A Cyrela questionou decisão do Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão (TRT-MA), que manteve sentença a favor do vínculo de emprego (Rcl 56132). Já a Educo Serviços recorreu de decisão do TRT do Espírito Santo (Rcl 55607).
As duas decisões são similares e fazem um breve histórico das decisões do STF sobre terceirização e prestação de serviços via pessoa jurídica. Em 2021, os ministros consideraram constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor (ADI 5.625).
Nas decisões, Barroso afirma que o contrato de emprego não é a única forma para se estabelecer uma relação de trabalho. “Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia.”
Para ele, “são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço”.
O ministro destaca ainda que esses casos não envolvem trabalhadores hipossuficientes. “Trata-se de profissional com alto grau de escolaridade e remuneração expressiva, capaz, portanto, de fazer uma escolha esclarecida sobre sua contratação.” Há também decisões da 1ª Turma nesse sentido (Rcl 39.351 e RCL 47.843).
Em setembro, a ministra Cármen Lúcia analisou uma reclamação, que envolvia o Hospital Fundação Ouro Branco, em Minas Gerais. O caso envolve ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho contra contratação de médicos como pessoa jurídica.
Na decisão, a ministra cassou decisão da 7ª Turma do TST e determinou novo julgamento, observando as decisões do Supremo. O caso transitou em julgado (não cabe mais recurso).
Em junho, o ministro Dias Toffoli deu decisão a favor do escritório de advocacia Burlamaqui Consultores. A banca tinha contratado uma advogada como cotista e recorreu de decisão do TRT de Minas Gerais (Rcl 53.899).
Maurício Corrêa da Veiga, sócio do Corrêa da Veiga Advogados, que defende a Cyrela, a Fundação Ouro Branco e o escritório Burlamaqui Consultores, afirma que as decisões do STF vêm desconstruindo toda a jurisprudência trabalhista. Ele acrescenta que, no caso dos hipersuficientes, pode-se admitir outras relações de trabalho.
O uso da reclamação, segundo Veiga, “é a bala de prata”. “Vamos direto ao Supremo, já que pelo caminho tradicional [da Justiça do Trabalho] enfrentamos aquele viés viciado de aplicação de conceitos antigos trabalhistas”. Ele afirma que já entrou com 12 reclamações no STF.
Na Justiça do Trabalho, ainda são poucas as decisões que admitem a “pejotização”, até mesmo para os hipersuficientes. “É preciso que a Justiça do Trabalho se desprenda de dogmas ultrapassados e se alinhe à jurisprudência do STF”, diz o advogado Alberto Nemer, do Nemer Advogados, que assessorou a Educo Serviços.
Segundo o advogado Jorge Matsumoto, do Bichara Advogados, as decisões reafirmam a importância do conceito de hipersuficiência, introduzido pela Lei da Reforma Trabalhista. “Essas decisões fortalecem a autonomia das partes”, afirma. Para ele, o STF considera em diversas situações os elementos importantes da reforma, que na seara trabalhista, de maneira inexplicável, não se leva em consideração.
Para José Eymard Loguercio, do LBS Advogados, que assessora trabalhadores, porém, o uso da reclamação não seria o remédio adequado. “Isso porque as premissas jurídicas gerais estão postas. Porém, o próprio STF admite que a pejotização não pode desaguar em fraude e a fraude se constata em processo individual probatório.”
A exclusão de proteção por um critério econômico (hipersuficiência), diz Loguercio, “é um equívoco absoluto”. “Acho que o Supremo, ao abrir em demasia a admissão de reclamações constitucionais, e isso tem acontecido com outros temas, está promovendo uma inversão do sistema jurídico.”
Auditor fiscal do trabalho no Rio de Janeiro, Ronald Sharp Junior entende que a terceirização em qualquer atividade é lícita, como já decidiu o STF. No entanto, acrescenta, desde que não exista uma relação de emprego com o tomador de serviços.
Ele afirma que, mesmo no caso do trabalhador hipersuficiente, a reforma trabalhista estabelece, no artigo 444, ao vincular aos artigos 611-A e 611-B, que existem direitos negociáveis e outros não. E entre os direitos inegociáveis estão alterações nas anotações da carteira de trabalho. “Nos casos em que não há uma relação de emprego, as partes têm autonomia para decidir se querem um contrato civil, mas quando estão presentes as relações de emprego não se pode abandonar o modelo da CLT”, diz.
Procurado pelo Valor, o Ministério Público do Trabalho não deu retorno até o fechamento da edição.