O diretor jurídico do iFood, Lucas Pittioni, afirma ao Estadão/Broadcast que o Brasil precisa regulamentar o trabalho por aplicativo para assegurar direitos mínimos aos trabalhadores independentemente de políticas comerciais das plataformas. A empresa vê como necessários um novo modelo de contribuição à Previdência, para garantir aposentadoria digna a esses profissionais, e uma política de ganhos mínimos, mesmo que isso signifique colaboração financeira por parte das empresas.
“Vai precisar encontrar uma forma de repartir essa conta com todas as partes envolvidas, e o setor privado vai ter que dar sua contribuição”, afirma. Abaixo, os principais trechos da entrevista.
O iFood está defendendo a regulamentação do trabalho por aplicativo para assegurar maior proteção social aos trabalhadores, como aposentadoria. Vocês consideram que as empresas também terão de contribuir nesse novo modelo?
Não sei se o mais adequado é falar que as empresas terão que, mas eu acho que essa possibilidade está na mesa e precisa estar. A gente tem hoje no Brasil quase 15 milhões de desempregados, taxas de desemprego ainda mais altas entre a parcela mais jovem da população, plataformas como fonte superimportante de renda e gerando oportunidades de primeiro emprego para muitos desses brasileiros. O modelo atual e o modelo mais tradicional de trabalho de emprego vão coexistir. Dito isso, a gente precisa de um modelo de Previdência que pense no futuro e que seja sustentável tanto para o trabalhador quanto para o Estado e para as empresas. Precisa ser uma regulação que fomente investimento, que dê segurança jurídica, que incentive as empresas a seguirem crescendo inovando e gerando esses postos de trabalho. Aqui no Brasil a ferramenta que talvez mais resolva essa situação atual é a do MEI, só que o MEI é ultrassubsidiado pelo governo. Se o MEI de fato for usado como solução da forma como ele é hoje, a gente vai criar um problema para o futuro.
Como resolver isso?
A gente precisa pensar um modelo de previdência novo, que de um lado leve em consideração essas particularidades do trabalho em plataforma com diferentes fontes de renda, e de outro lado a parte do financiamento, do orçamento. Isso significa que essa conta vai ficar com o trabalhador? Na visão aqui do iFood não, a gente acha que a gente vai precisar encontrar uma forma de repartir essa conta com todas as partes envolvidas, e o setor privado vai ter que dar sua contribuição. Se vai chegar nesse resultado final ou não, ainda vai ser muito discutido com Congresso, com setor privado, com os trabalhadores. Mas esse é um problema que a gente precisa enfrentar, não vai ter como fugir dele.
Há preocupação com pequenas plataformas. Colocar o debate dessa maneira poderia inviabilizar eventualmente a atividade delas?
Há dois ângulos principais. O primeiro é que a figura central desse debate precisa ser o trabalhador. A gente precisa construir um marco regulatório que coloque em norma a dignidade e a segurança do trabalhador. O segundo ponto é que um dos desafios de se regular o trabalho de plataforma é justamente a diversidade de modelos de negócios e de perfis de uso pelos trabalhadores. A solução para o sistema de previdência vai ter que levar em consideração a renda que cada trabalhador tem com cada plataforma. Se é uma renda menor, se é um perfil de uso mais esporádico, talvez o valor tenha que ser menor. Se é um uso mais frequente, com perfil mais profissional, será uma renda maior, será que tem que ter uma contribuição maior? A gente não tem essas respostas, mas o debate precisa começar.
Todo trabalhador deveria participar, ou poderia se discutir algo opcional para o trabalhador que usa poucas horas?
Um dos caminhos talvez seja adotar uma regra parecida com o que a gente tem no imposto de renda hoje, até determinado valor o trabalhador está isento de contribuição, passa a pagar acima de um determinado valor. A gente precisa levar em consideração que, quanto menor for a renda que aquele trabalhador tem com a plataforma, menos propenso vai estar em dedicar uma parte daquele recurso para o Estado brasileiro. Muito provavelmente a solução aqui vai ser ter algo progressivo.
Manter a atual legislação seria um risco para as empresas? A nova regulamentação ajudaria nesse sentido de dar mais segurança jurídica?
No caso do iFood especificamente, a gente tem um histórico de decisões judiciais sobre esse tema completamente desfavorável à aplicação da CLT na relação entre a plataforma e o entregador. Defender uma regulação específica para essa forma de trabalho publicamente não está baseado nessa insegurança jurídica que de alguma forma existe. Uma regulação é inevitável e é importante porque a gente precisa ter bases mínimas aplicáveis a todas as plataformas, direitos mínimos independentemente das políticas comerciais. Só assim que a gente vai virar a página e caminhar na direção de dizer que temos uma profissão regulamentada sem perda de direitos, que tem políticas justas para o trabalhador
Se eventualmente o trabalhador não atingir o ganho mínimo por hora trabalhada, as plataformas terão que assegurar que dentro do preço ao consumidor inclua uma remuneração suficiente?
Sem dúvida. A gente não chegou a entrar neste momento em como a regra seria operacionalizada, mas a minha a minha reação inicial é de que esse deveria ser o caminho, sim. Por exemplo, a gente fecha o mês, vê quantas horas o trabalhador trabalhou com a plataforma. Se por qualquer razão essas horas não tenham levado em consideração esse ganho mínimo, a plataforma deveria complementar para que o mínimo fosse atingido. Esse me parece ser o caminho mais simples para efetividade dessa regra.
Por que o iFood decidiu agora é puxar esse esse debate? No ano passado vimos muitas manifestações de entregadores pedindo melhores condições de trabalho.
Esse passo neste momento é resultado de muita escuta. Tivemos todas as movimentações do último ano, não só dos entregadores, mas da sociedade como um todo. A gente formou um time de políticas públicas, também temos equipes dedicadas 100% a conversar com os entregadores. Temos acompanhado essa discussão em outros países também. Estudamos muito o que vem acontecendo na Índia, na Colômbia, onde a gente também tem uma operação, e na Europa. E parece ser um consenso na maioria dos países que existem algumas especificidades nessa nova forma de trabalho que demandam um olhar mais dedicado, específico. Ficar buscando a solução perfeita antes de externalizar essa visão só vai atrasar algo que é de extrema importância para o País. Então vamos dar o pontapé inicial, nós não temos a arrogância de achar que as respostas estão todas aqui conosco. A gente precisa do diálogo.
Dos outros países vocês já conseguem ter uma referência do que fazer ou do que não fazer?
Ainda estamos estudando um pouco mais no detalhe o assunto, mas a gente tem escutado falar muito bem de uma de uma lei recente na Índia que criou uma previdência específica para os trabalhadores de plataformas. Parece que os primeiros resultados são positivos, de adesão, de um sistema que é fácil de implementar, uma contribuição ou retenção nas plataformas. Estamos esperando para ver se os resultados. No Reino Unido, teve uma decisão recente da corte superior… lá você já tem uma figura intermediária entre o trabalho tradicional e o trabalhador independente, que era a figura anterior (aplicada ao entregador). O que essa decisão fez foi colocar os motoristas nessa figura do meio, que é o “worker”, que tem alguns direitos que o trabalhador independente não tem, mas também não está na figura do vínculo de emprego mais tradicional. Eu não sou um especialista na legislação inglesa, mas me parece que o que a gente está buscando aqui é algo de certa forma parecido. Ter uma figura nova que tire o trabalhador dessa situação em que de um lado ele precisa optar por autonomia flexibilidade, as coisas que ele valoriza o trabalho de plataforma, e de outro tenha que ficar com uma subordinação regras travadas que ele não quer para ter acesso a determinados benefícios da previdência pública.
O ESTADO DE S. PAULO