‘Sem uma política fiscal, é melhor desistir de combater a inflação’

A conjuntura econômica da recessão global causada pela covid-19 dá um tempo, de uns dois anos, para o Brasil buscar uma “construção política” para atingir o equilíbrio das contas públicas, diz Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). Se não fizer uma “arrumação fiscal” nesse período, quando a economia brasileira se recuperar do tombo com a pandemia, a inflação voltará a subir.

Não será uma crise com “hiperinflação” – no último dia 9, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o Brasil pode “ir para uma hiperinflação muito rápido” se não rolar a dívida pública satisfatoriamente –, mas uma pressão que aumenta aos poucos, numa “degradação permanente”, diz Pessôa. A saída para evitar o pior, segundo o pesquisador, é manter o teto dos gastos públicos (regra que limita o aumento das despesas à inflação do ano anterior), aprovar a proposta de emenda constitucional (PEC) que cria os gatilhos de corte de despesas, permitindo o cumprimento do teto, e aprovar uma reforma administrativa abrangente.

● O aumento de gastos do governo para enfrentar a pandemia de covid-19 chegou ao limite?

O limite é dado pelo tamanho da dívida (pública), pelo que se considera ser o custo dessa dívida a médio prazo e pelo que achamos que é capacidade de crescimento da economia. Esses três parâmetros vão determinar qual o superávit que o Estado precisa para manter a dívida estável e até diminuí-la. Com uma dívida de 100% do PIB (Produto Interno Bruto) e um custo de capital (juros) de 4% (ao ano), se a economia cresce 2%, essencialmente, o superávit primário tem de ser 2% do PIB para estabilizar a dívida. Só que um país emergente com uma dívida de 100% do PIB precisa fazer essa dívida diminuir. Um superávit de 2% está no limite, é arriscado. Na verdade, em algum momento o superávit vai ter de ser mais próximo de 3%. Isso dá uma ideia do esforço fiscal.

● As projeções para os próximos anos mostram que um superávit ainda está longe, não?

Podemos dizer que temos alguma folga, porque o desemprego está muito elevado. Por isso, a taxa de juros está bem mais baixa e o crescimento da economia, durante alguns anos, vai ser mais alto. Há um horizonte de dois anos pela frente em que a conta (da estabilização da dívida pública) não será desse jeito que eu fiz. Vamos ter um custo médio da dívida menor do que o crescimento econômico. Isso dá um fôlego. Agora, se não quisermos fazer uma política fiscal conservadora, contracionista, para produzir esse superávit e colocar a dívida em trajetória de queda, é melhor desistir de combater a inflação.

● O desequilíbrio das contas públicas levará a mais inflação?

Se a dívida é muito alta, e o governo não está fazendo uma política fiscal para estabilizar a dívida, quando começa a ter inflação, o Banco Central (BC) tem de subir juros. A subida de juros contém a demanda (e, assim, arrefece a inflação, já que os preços sobem quando há mais demanda do que oferta de bens e serviços). Mas tem um elemento da subida de juros que não contém a demanda. O juro é renda para alguém, para os detentores da dívida pública. Quando sobem os juros, a renda dos detentores da dívida pública aumenta. Esse efeito, em geral, é pequenininho, quando a dívida pública não é muito grande, porque, em geral, os governos lançam títulos em que os juros estão pré-fixados. Assim, quando o BC sobe o juro para combater a inflação, o título já emitido tem a mesma taxa. Só nos novos títulos emitidos no período em que os juros ficarem mais altos (para combater a inflação) é que vai incidir uma taxa maior. Se no período em que os juros estiverem mais altos a quantidade de títulos que o governo precisar emitir for pequenininha, não tem nenhum efeito. Agora, suponha um país que emite uma parte grande de seus papéis pós-fixados (quando juro do título da dívida pública é igual à taxa básica, seja ela qual for). É o nosso caso.

● O que acontece?

Quando sobem os juros, imediatamente, a renda do cara que tem papel (e não só de quem compra títulos novos) aumenta. Suponha, além disso, que o prazo médio de vencimento da dívida pública é curto. Em um ano, o governo tem de refinanciar 30% da dívida. Se ficarmos um ano combatendo a inflação com juros mais altos, uma parte grande da dívida vai ser renovada com juro mais alto e, depois de um ano, já estamos gastando um dinheirão para remunerar aquela dívida. Se além de tudo a dívida é grande, esse efeito de aumentar a renda do setor privado (investidores da dívida pública) quando sobe a taxa básica de juros passa a ser muito importante. Aí, a política monetária perde a capacidade de ser a reguladora da demanda agregada. Nessa hora, o BC aceita a inflação, não tem mais como combater. Nessa hora, estamos naquilo que chamamos de “dominância fiscal”.

● O Brasil está prestes a entrar em “dominância fiscal”?

A dominância fiscal depende do tamanho da dívida, do prazo médio de vencimento e da proporção de títulos pós-fixados, mas depende também da política fiscal. Temos algum refresco pela conjuntura econômica, que nos dá um tempo, mas se, nesse intervalo de tempo, não houver uma construção política que arrume a política fiscal, que construa, de forma estrutural, uma posição superavitária das contas públicas, vamos estar, em dois anos, em dominância fiscal. Quando a economia se recuperar, o desemprego cair e a inflação começar a subir, estaremos em dominância fiscal.

● Isso levará a uma nova crise?

Não gera uma crise. Gera uma degradação permanente da conjuntura econômica. A inflação começa a subir, o BC não pode combater essa inflação, e ela vai subindo. Explode como hiperinflação? Acho que não, não explode. O processo de reinflação de uma economia é suave, é persistente, pode ser até meio rápido, mas não é descontínuo (com ruptura), principalmente para uma economia que tem tantas reservas como a brasileira. As reservas amortecem os choques.

● Então não é um quadro de hiperinflação como o mencionado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes?

Não é. O quadro que o ministro descreveu seria válido para a situação que tínhamos em 1998, quando uma parte grande da dívida era denominada em dólar. Ou em 2002, um quadro de aceleração inflacionária mais rápida. Para haver descontinuidade, o país tem de ter muitos passivos denominados em dólar.

● A pressão recente da inflação, ainda que dentro da meta, é um sinal de alerta?

Uma parte significativa desse choque inflacionário de alimentos tem como origem a desvalorização do câmbio (alta do dólar) este ano. O câmbio está desvalorizando desde janeiro de 2018 e não teve pressão inflacionária, não teve repasse cambial. Por que agora está tendo? O que importa para saber se vai ter repasse cambial, além do desemprego, já que numa economia com muito desemprego o repasse é sempre menor, é a natureza do choque cambial. Esse fator, para o Brasil, é até mais importante do que o mercado de trabalho. Há dois tipos de choque cambial. O Brasil é um grande exportador de commodities (matérias-primas com cotação internacional). Vamos supor que, em três meses, as commodities têm um aumento de 30%. Numa economia com câmbio flutuante, naturalmente, há uma compensação: se as commodities ficaram mais caras em 30%, o câmbio vai se valorizar (o dólar vai cair) em 30%. E vice-versa. As commodities perdem valor, o câmbio desvaloriza (o dólar sobe). Esse mecanismo acontece quase automaticamente, pela operação do mercado financeiro. É uma das maravilhas do câmbio flutuante, porque protege a inflação brasileira das oscilações das commodities no mercado internacional. Nesse caso, não tem repasse cambial, porque quando desvaloriza o câmbio (o dólar sobe), aquela desvalorização está compensando um monte de commodities que ficaram mais baratas. Por isso, muitas vezes, o câmbio anda muito e não tem nenhum repasse.

● Qual o outro tipo de choque cambial?

O que está gerando agora a desvalorização do câmbio foi a covid, o choque externo, que atinge todas as outras moedas de países emergentes. Só que a nossa moeda se desvalorizou mais. Tem uma componente da desvalorização brasileira que é um problema doméstico, de natureza política, associado à dificuldade de resolver o nosso problema fiscal. Isso bate no câmbio. Nos últimos dois trimestres, era para o câmbio ter se valorizado (o dólar ter caído), porque as commodities ficaram mais caras no mercado internacional. Pelo mecanismo de compensação, o câmbio deveria ter se valorizado para compensar, mas não só ele não valorizou como a percepção de risco aumentou e ele se desvalorizou. Temos uma pressão inflacionária por dois motivos: o câmbio está mais desvalorizado e as commodities estão mais caras.

● Isso é um prenúncio do que aconteceria na “dominância fiscal”?

Exatamente. Não haveria compensação (da variação das cotações de commodities) e a gente ficaria importando inflação. (O movimento) Está pequeno porque há outros fatores que jogam na direção contrária. A inflação depende da resultante dessas quatro forças. Uma é a inércia, o passado. Outra é a expectativa, o futuro. A terceira é o câmbio. A quarta é o grau de ociosidade vigente na economia. O que acontece na dominância fiscal? O câmbio começa a andar (o dólar começa a subir). Como não tem o mecanismo de compensação, começa a ter repasse cambial. Uma hora esse repasse fica mais continuado e afeta as expectativas. As pessoas começam a projetar uma inflação mais alta. Como estamos começando com uma inflação muito baixa, a inércia joga na direção de manter a inflação baixa. E a ociosidade, o desemprego, vai na direção de manter a inflação baixa. Agora, se o mecanismo criar uma dinâmica própria, a força do câmbio e das expectativas vencem a ociosidade e a inércia, e entramos numa trajetória de reinflação. O começo é lento. As expectativas (de inflação) já estão subindo. Quando a inflação começar a subir um pouquinho, começará a acelerar a inércia. Daqui a pouco, o desemprego começa a diminuir. Aí, bem-vindos ao mundo da inflação.

● Não há hiperinflação por causa dessas quatro forças?

É, o câmbio não vai a R$ 10. Com muitas reservas, tem um limitador. O câmbio vai se desvalorizando aos pouquinhos. Com muita dívida em dólar, o processo se retroalimenta. Com ativos (reservas internacionais) em dólar, o processo não se retroalimenta, porque, conforme se valoriza o dólar, a sua dívida (pública) cai. E isso ameniza o problema.

● Essa aceleração da inflação se dá em que ritmo?

É 5,0% no próximo ano, 7,5% no ano seguinte, 10,0% no próximo, e assim sucessivamente.

● Vários países gastaram mais com a pandemia. Por que o problema é maior no Brasil?

Estamos fazendo o que todos os países fizeram. O problema é que fizemos mais do que os outros e o nosso ponto de partida era pior do que os outros. Evidentemente, as pessoas (investidores) estão menos preocupadas com o endividamento em todo mundo, porque todos entendem que a natureza do choque é externa. Agora, o Brasil é dos que estão na pior situação. Fomos provavelmente o emergente que mais gastou por conta da pandemia e nosso ponto de partida era um dos piores.

● O teto de gastos tem sido eficaz para conter o desequilíbrio fiscal?

Se tirar o teto, o câmbio vai para R$ 7,00 ou R$ 7,50. O teto está funcionando, muito. Está funcionando na sua função de economia positiva, que é dar uma âncora para a restrição orçamentária do setor público. É a garantia de alguma solvência para o setor público. Isso ajuda a manter os riscos mais baixos. Agora, o teto tem também uma função de economia política. É auxiliar a sociedade a resolver o conflito distributivo. Isso está funcionando. Aprovamos a reforma da Previdência. Se o governo não fosse tão inepto na liderança, já teríamos aprovado mais coisas. Agora, nada impede que se troque o teto por outro teto, outra regra fiscal, mas, antes de mexer no teto, temos de construir outra âncora. Antes de fazer um novo teto para gastar mais, temos de aprovar no Congresso novos impostos. Pode até ter um ano de defasagem para os novos impostos entrarem, mas tem de aumentar a capacidade arrecadatória. O problema fiscal é termos regras que obriguem o gasto público a subir mais do que o PIB sistematicamente. O teto só impõe uma trava nesse processo, de uma maneira muito grosseira, porque trava tudo, mas tem de ser grosseiro mesmo, exatamente para gerar uma economia política favorável à mudança.

● Por que é difícil equilibrar as contas com um plano mais amplo?

Porque a economia política do País é complicada. O País é heterogêneo, muito desigual, os interesses são divergentes. A nossa economia política, em geral, nos leva a inflação. Não temos inflação porque o Espírito Santo quis ou porque tem um anjo maligno que quer nos fazer sofrer. Temos pressão inflacionária porque o conflito distributivo na sociedade brasileira é muito estrito. Temos muita expectativa de direitos de servidor público, com paridade, integralidade e aposentadoria precoce. Temos de mexer nesses direitos adquiridos, mas as corporações não querem. Temos uma isenção tributária brutal no regime tributário especial do Simples (para empresas de menor porte), mas o Congresso não quer mudar. Tem a contribuição que vai para o Sistema S, uma construção dos anos 1940, quando não havia educação pública nem escola técnica. Hoje, universalizamos a escola fundamental, temos escola técnica, e continuamos tendo o Sistema S. Esse dinheiro tinha de financiar as escolas técnicas. Não é que tem dinheiro sendo jogado na rua. São programas cuja eficácia é menor do que custam. Se parar esses programas, o Estado fica mais rico. Aos pouquinhos, vamos resolvendo, porque a sociedade vai aprendendo, mas há um custo político muito grande. Envolve a percepção da sociedade e a capacidade da sociedade como um todo de se proteger de grupos de pressão.

● No curto prazo, o que deveria ser feito?

Aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) emergencial do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), que está no Congresso desde o quarto trimestre de 2018 (e cria gatilhos para fazer o teto de gastos ser cumprido).Talvez valha introduzir alguns gatilhos mais poderosos do que os que têm lá. E aprovar essa PEC aplicada à União e aos entes subnacionais, Estados e municípios. Também passar aquela emenda (constitucional) que corta os supersalários. E uma reforma administrativa que dê mais racionalidade para a estrutura de carreiras, acabe com a progressão automática, a incorporação de prêmios.

● A reforma administrativa não é mais focada na eficiência do que no corte de gastos?

O foco da reforma administrativa deveria ser a eficiência, mas, no Brasil, hoje, o objetivo de aumentar a eficiência vai junto do objetivo de conter o crescimento do gasto.

● É possível reequilibrar as contas sem tirar dos pobres para dar para os paupérrimos?

Falamos aqui do Simples, do Sistema S, da reforma administrativa, dos gatilhos. Tudo isso não é tirar dos pobres para dar para os paupérrimos. Então, dá.

● A reforma tributária ajuda o equilíbrio fiscal?

A reforma tributária prioritária é a dos impostos indiretos. Gosto muito da PEC 45, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP). Aquilo lá é para gerar crescimento econômico, eficiência, porque vai diminuir muito os custos de transação na economia brasileira, mas acho que não está associado ao problema fiscal. A reforma é neutra do ponto de vista fiscal.

● Aumentar impostos para os mais ricos, com uma reforma tributária, não é saída para o desequilíbrio fiscal?

É uma terceira agenda, que é aumentar a progressividade dos impostos de renda no Brasil. É aumentar as faixas do Imposto de Renda da Pessoa Física, cobrar mais de 27,5% a partir de determinada renda, aumentar talvez o Imposto Territorial Rural (ITR), aumentar o IPTU. A questão fiscal tem que ser tratada, primeiro, pela ótica do gasto público. Depois, pode até fazer mudanças na receita, mas tem de começar pelo gasto. O desequilíbrio está no gasto. Do jeito como as contas públicas estão definidas hoje, o gasto público tem de crescer mais do que o PIB sistematicamente. Não faz sentido uma sociedade em que, faça chuva ou faça sol, o gasto público vai crescer mais do que a base econômica que sustenta aquela sociedade. Tudo isso por causa de uma série de regras, de programas sociais, aposentadorias dos servidores públicos, que obrigam que o gasto público cresça mais do que a receita e do que a economia.

O ESTADO DE S. PAULO

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