Estudo inédito revela desafio para o novo governo Lula, que disse que priorizará a regulação desse tipo de trabalho em uma reforma trabalhista ‘fatiada’ e já é alvo de críticas e ameaças de greve da categoria.
Por BBC
Quando voltava da última entrega de um domingo de maio de 2019, Rafael Vaz de Lima sofreu um acidente de moto. Saiu da queda sem um único arranhão, mas perdeu o movimento das pernas e dos braços.
“Senti a traseira da moto dando uma balançada, aí virei a cabeça para ver se o pneu tinha furado. Na hora que virei para frente, a visão já voltou escura, e eu apaguei”, diz ele.
Após o “apagão” na visão – provavelmente causado por stress, segundo Lima ouviu dos médicos -, a moto caiu para um lado e ele para o outro, no acidente que não envolveu outros veículos. Lima conta que estava a menos de 50km/h e já reduzia a velocidade antes de parar em um semáforo.
O que o deixou tetraplégico, segundo a equipe médica disse a Lima, foi o impacto da mochila de entrega no corpo, que afetou a medula espinhal na região cervical.
“A caixa de pizza, que estava nas costas, fez uma pressão no meu pescoço e afetou minha medula. Caí de mau jeito”, diz o paulistano.
Morador do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo, e hoje com 31 anos, Lima passa por tratamento de reabilitação em clínica do governo para conquistar independência em alguns movimentos. “Hoje, já consigo comer sozinho, mas, antes, não conseguia. Tomar banho ainda não consigo sozinho, minha mãe me dá banho.”
“Em um momento, você é uma pessoa ativa e, depois que sofre um acidente desse, vira dependente totalmente”, diz.
Sem condições de exercer seu trabalho, Lima recebe hoje aposentadoria por incapacidade permanente (antes, chamada de aposentadoria por invalidez) pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Lima tem direito ao benefício porque, antes do acidente, contribuía com a Previdência Social como microempreendedor individual (MEI) – modalidade que tem uma taxa reduzida, de 5% do salário mínimo (hoje R$ 66 por mês), em vez das opções de contribuição com 11% do salário mínimo ou 20% da remuneração (limitada ao teto do INSS).
Ele chegou a ficar um período sem fazer os pagamentos, mas conta que apenas um mês antes do acidente havia regularizado suas contribuições, a pedido do dono de um dos restaurantes para os quais ele trabalhava.
Além de entregas por meio de diferentes aplicativos, o trabalho de motoboys autônomos também pode incluir serviços pontuais para outras empresas, com pagamentos por diária e/ou por entrega, segundo Lima.
“Eu não tinha interesse em abrir MEI por achar que não precisava. Hoje, vejo a importância. Se eu não tivesse, estaria em casa passando muito sufoco. Nem sei como seria para me manter. Tenho dois filhos, pago pensão”, diz.
“A melhor coisa que tem é se prevenir. Se a pessoa quer ser, como dizem, seu próprio patrão, então, é bom pagar seu MEI. A gente nunca sabe o dia de amanhã.”
Só 23% têm cobertura do INSS, aponta estudo inédito
A proteção da Previdência Social não é a realidade, no entanto, da maioria dos brasileiros que trabalham por conta própria (sem carteira assinada) com entrega de mercadoria e transporte de passageiros.
Isso é o que mostra uma pesquisa inédita à qual a BBC News Brasil teve acesso.
Apenas um a cada quatro (23%) entregadores e motoristas autônomos paga contribuição ao INSS, segundo o estudo, de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ou seja, os 77% que não contribuem com a Previdência Social, além de não terem seu tempo de trabalho contado para a aposentadoria, não estão protegidos em casos de acidentes, como o de Lima, ou de doenças que exijam afastamento do trabalho. Também não recebem salário-maternidade e não deixam pensão por morte para dependentes.
O levantamento – que inclui motoristas, taxistas e entregadores em motos e bicicletas – aponta que o total de trabalhadores nessa área era de 1,7 milhão no terceiro trimestre de 2022. No fim de 2021, eram 1,5 milhão.
Outra descoberta relevante foi a de que, no Brasil, essas atividades são, na maioria das vezes, a única ocupação desses trabalhadores – e não um trabalho secundário que complementa a renda, como destacou o economista Leonardo Alves Rangel, pesquisador do Ipea e autor do estudo.
“Tem um debate internacional de que (trabalho em aplicativo) é a segunda ou terceira ocupação, para complementar a renda, mas 93% deles têm isso como única ocupação”, disse à BBC News Brasil.
Os outros autores da pesquisa são Anthony Teixeira Firmino, do IBGE, e os pesquisadores do Ipea Geraldo Góes e Felipe dos Santos Martins.
A Pnad Contínua, pesquisa do IBGE que serviu como base do estudo, não tem hoje perguntas específicas para identificar o número de trabalhadores em aplicativos.
Os pesquisadores precisaram filtrar os trabalhadores por conta própria e cruzar variáveis relacionadas a ocupação e atividade para chegar aos números de pessoas que trabalham com entrega de mercadoria e transporte de passageiros.
“A dificuldade principal é que, assim como outras pesquisas domiciliares do mundo que captam informações socioeconômicas, a Pnad Contínua não tem perguntas específicas para identificar questões contemporâneas como o trabalho em plataforma, teletrabalho, e outras formas não tradicionais de emprego”, explicou Rangel.
O que influencia autônomo a pagar INSS?
O aumento no total de trabalhadores nessa área desde 2016 (quando não chegava a 1 milhão) veio acompanhado por uma queda na parcela desse grupo que contribui com o INSS.
Vários fatores explicam por que um trabalhador autônomo contribui ou não com o INSS, e o principal deles é a renda, segundo Rangel, especialista em Previdência.
“Outro elemento que conta bastante é a escolaridade, que tem a ver com saber a importância de contribuir e com ter um histórico contributivo no INSS e não querer deixar de ser coberto pelo INSS. E também tem a idade – quanto maior a idade, maior a chance de contribuir sendo autônomo.”
Outros fatores são mais difíceis de medir, mas entram na equação, como a facilidade de uso do aplicativo do INSS, segundo Rangel.
Ele acrescenta o fluxo de dinheiro na conta de um autônomo também pode influenciar. Em vez de receber toda a remuneração em um dia, pode haver entrada e saída de dinheiro diariamente, dificultando um pagamento de uma quantia mais alta se a pessoa não se organizar para ter o valor na conta na data do pagamento para a Previdência.
Onde tem mais autônomo protegido pela Previdência?
A proporção de trabalhadores sem cobertura previdenciária varia entre as regiões, como mostra a pesquisa, e reflete a diferença de desenvolvimento socioeconômico entre as regiões – onde há maior renda média, há também maior proporção de contribuintes.
Na região Norte, menos de 10% dos motoristas e entregadores autônomos estão protegidos e, no Sul, 37% têm cobertura.
Por que a falta de adesão à Previdência é um problema para o país?
Além de destacar o desamparo do trabalhador que não tem proteção da Previdência Social, Rangel destaca que a baixa cobertura é também um problema para o país.
“Quando você tem um trabalhador protegido, diminui a chance da pessoa incorrer em uma situação de pobreza ou extrema pobreza”, diz.
“Imagina um trabalhador que ganha um ou dois salários mínimos por mês e, por qualquer que seja o motivo, ele não consiga trabalhar. Se não tiver alguém na família dele que consiga ajudá-lo, ele corre risco de não ter dinheiro para enfrentar as necessidades básicas do dia-a-dia.”
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem dito que o tema está no radar, mas ainda não explicou de que forma buscará resolver a questão.
Ao assumir o comando do Ministério do Trabalho na terça-feira (3/1), Luiz Marinho disse que dará prioridade à “regulação das relações de trabalho mediadas por aplicativos e plataformas, considerando especialmente questões relativas à saúde, segurança e proteção social”.
Isso será feito, segundo ele, “para assegurar padrões civilizados de utilização dessas novas ferramentas”.
O novo ministro afirmou que pretende apresentar uma proposta de regulação do trabalho por aplicativo no primeiro semestre deste ano – que fará parte, segundo ele, de uma reforma trabalhista “fatiada” que o ministério planeja enviar ao Congresso.
O plano de governo de Lula menciona que sua gestão vai revogar o que chama de “marcos regressivos da atual legislação trabalhista” e diz que vai propor “a partir de um amplo debate e negociação, uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas”.
As empresas procuradas pela reportagem disseram defender uma garantia de proteção social para os entregadores, mas destacaram a necessidade de levar em conta novas relações de trabalho (ou seja, um vínculo que não é CLT). Veja mais abaixo o que diz associação de motofretistas e como as empresas se posicionam.
Como garantir proteção social a trabalhador sem vínculo de emprego?
Rangel destaca que esse tema é “um problema antigo com roupagem nova”. “Informalidade e desproteção previdenciária no Brasil são um problema de décadas. Há desafios novos, principalmente por causa da intermitência do trabalho e a pessoa poder trabalhar em mais de um aplicativo, mas é um problema antigo.”
O pesquisador diz que o governo deve, primeiro, ouvir diretamente esses profissionais e que uma eventual proposta deve considerar que muitos deles demonstram que querem manter essa flexibilidade.
Uma possibilidade, segundo Rangel, seria fazer um desconto de contribuição previdenciária na fonte – ou seja, no valor que a plataforma repassa ao motorista ou motoboy parceiro.
E o que fizeram outros países?
Um fator que dificulta a comparação do cenário brasileiro com o de outros países nessa área, segundo Rangel, é que na Europa e nos Estados Unidos muitos desses trabalhadores têm as atividades de entrega ou transporte de passageiros como secundária, para complementar a renda de um trabalho principal, que já os inclui no sistema de proteção social.
Ainda assim, esse debate tem acontecido em diversos países. Um exemplo foi a exigência, pela Espanha, de que as plataformas contratassem os trabalhadores como seus funcionários – uma opção que não parece ter apoio no Brasil (veja abaixo avaliação de associação de motoboys e empresas do setor).
Em um exemplo mais próximo, o Chile aprovou uma lei pioneira na América Latina para regular o trabalho de aplicativo, que garantiu direito à Previdência. Mas, como destaca Rangel, ainda não há uma análise completa dos resultados.
‘Vaquinha’ para ajudar os colegas e o que diz associação
O presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Francisco da Silva, o Gringo, conta que era comum ver vaquinhas entre colegas para tentar ajudar motoboys acidentados.
“A grande maioria não tem MEI, porque o aplicativo não exige, e os que têm foi porque o aplicativo exigiu em algum momento, porque senão também não teriam. E os que têm, às vezes, não pagam”, relata ele, que é motofretista há 22 anos.
Agora, segundo Silva, a associação faz um trabalho de recomendar que façam cadastro no MEI e, para os que precisam regularizar o cadastro, ajudam na negociação para parcelar a dívida acumulada.
Mas isso não é suficiente. Silva defende que os entregadores tenham cobertura previdenciária com desconto na fonte e que sejam respeitadas e fiscalizadas regras já existentes para evitar acidentes.
Ele reclama que não há fiscalização da Lei 12.009/09, que regulamenta a atividade profissional de transporte de passageiros e entrega de mercadorias com moto. Entre outros pontos, a lei prevê a aprovação em curso especializado e uso de colete de segurança com dispositivos retrorrefletivos.
“Gostaria que a lei funcionasse e que fosse implantada dentro dela a exigência da seguridade. Ou seja, só entra na profissão legalizado e, aí, tem a seguridade social. Assim, você está mantendo a pessoa viva e trabalha o desenvolvimento dela para entender como é um verdadeiro autônomo. Muitos eram celetistas e, de repente, se pegaram na situação de autônomo – não sabem guardar reserva, não sabem o valor correto a pagar, e acabam trabalhando por valores que ele trabalhava na CLT, mas sem os benefícios.”
A cobertura previdenciária para a categoria poderia ocorrer, segundo a sugestão dele, com desconto na fonte (no pagamento do aplicativo ao motoboy) e com diferentes opções de alíquota.
“Vamos supor que ele optou pela alíquota de 5% (do salário mínimo, R$ 66). Cada aplicativo que ele trabalhar vai descontando um pedaço, até atingir o teto. Ou 11%, 20%.”
E essa redução no valor líquido seria bem recebida pelos entregadores?
“A categoria acha qualquer desconto ruim. Todo mundo quer ganhar o dinheiro puro. Mas acho que, se bem explicado, se mostrar as consequências, as pessoas que morreram e deixaram suas famílias sem pensão, as pessoas que estão passando necessidade, seria mais fácil de entender.”
O presidente da associação diz que “há um otimismo com o novo governo”, mas afirma que os trabalhadores de aplicativos querem ser ouvidos diretamente.
O que dizem as empresas
A BBC News Brasil procurou empresas da área para perguntar o posicionamento delas sobre o tema.
O iFood respondeu que, “embora ofereça seguros e proteções aos entregadores – como para lesões temporárias, por exemplo -, é fundamental um diálogo amplo (com entregadores, governo e o setor) sobre a construção de um modelo que entenda as novas relações de trabalho e garanta proteção social e direitos para esses trabalhadores”.
A 99 respondeu por meio da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que também reúne empresas como iFood, Uber e Amazon. A Amobitec disse que suas associadas “reconhecem a importância da discussão acerca da inclusão previdenciária de motoristas e entregadores parceiros”.
Disse, ainda, que “estão abertas ao diálogo, dispostas a colaborar nas discussões com o governo e trabalhadores, considerando as premissas como flexibilidade e a autonomia, que caracterizam as novas relações de trabalho intermediadas por aplicativos”.
Em uma carta de princípios publicada em abril de 2022, a Amobitec defende que “a ampliação da proteção social não deve acontecer com base em regras antigas que não se adequam à realidade do trabalho em plataformas”. Também diz que o aumento da proteção não deve gerar “aumento significativo de custos para motoristas e entregadores, nem para o consumidor final”.
A Uber afirmou que “defende publicamente a inclusão dos trabalhadores por aplicativo na Previdência Social, com as plataformas pagando parte das contribuições de forma de reduzir o valor a ser desembolsado pelos parceiros”.
A empresa cita uma pesquisa do Datafolha com motoristas e entregadores, na qual “a maioria absoluta dos motoristas e entregadores de aplicativos no Brasil quer manter sua independência”.
Segundo esse estudo, quando perguntados se prefeririam ser classificados como “profissional que trabalha por conta própria” ou como “empregado registrado”, dois a cada três rejeitaram o vínculo empregatício.
O Rappi respondeu por meio do Movimento Inovação Digital (MID), que reúne mais de 150 empresas digitais. A nota defende que o debate deve ter duas premissas: “1) a pluralidade de aplicativos que conectam os parceiros; e 2) a escuta e participação no debate de sindicatos, associações representativas e os mais diversos prestadores de serviços”. E também argumenta que há uma “preferência da categoria por um conjunto amplo de direitos e garantias, em detrimento de coberturas oferecidas pela CLT”.