Folha de S.Paulo
Superbônus não se traduzem em melhor desempenho econômico e aprofundam disparidade salarial nas empresas
Thiago Bethônico
SÃO PAULO
A cobrança por boas práticas sociais e de governança tem levado empresas a repensarem antigos hábitos de negócio, mas um aspecto ainda parece inabalável no meio corporativo: o pagamento de bônus milionários à alta liderança.
Recentemente, a divulgação do plano de remuneração do Nubank gerou discussão nas redes sociais. O acordo prevê o pagamento de mais de R$ 800 milhões à diretoria do banco em 2022, sendo R$ 678,9 milhões (84%) só para o CEO David Vélez.
Embora o valor seja maior do que o observado entre grandes companhias brasileiras, ele não chega a ser uma exceção. No ano passado, o Itaú Unibanco pagou R$ 444 milhões a seus administradores, enquanto o Bradesco distribuiu cerca de R$ 880 milhões a membros da diretoria e dos conselhos de administração e fiscal.
Normalizada pelo mundo corporativo, a prática contrasta com a postura de responsabilidade social que as companhias querem adotar em meio à atual onda ESG (sigla para ambiental, social e de governança), à medida que ajuda a agravar a disparidade salarial.
Um estudo do centro de pesquisas EPI (Economic Policy Institute) mostrou que a remuneração dos CEOs disparou 1.322% desde 1978, enquanto o salário de um trabalhador comum cresceu apenas 18%. De acordo com o levantamento, em 2020, os diretores-executivos receberam 351 vezes mais do que a média dos trabalhadores.
“O pagamento exorbitante dos CEOs é um dos principais contribuintes para o aumento da desigualdade que poderíamos eliminar com segurança”, afirmam os autores no estudo. Segundo eles, a alta liderança está ganhando mais porque é capaz de definir o quanto recebe e porque a maior parte dos bônus está vinculada a ações.
“Essa escalada da remuneração dos CEOs, e da remuneração dos executivos em geral, alimentou o crescimento dos rendimentos do 1% e do 0,1% mais ricos, deixando menos frutos do crescimento econômico para os trabalhadores comuns e ampliando a lacuna entre os que ganham muito e os 90% mais pobres” acrescentam.
O trabalho considerou principalmente a realidade dos Estados Unidos, onde os bônus pagos aos executivos são ainda maiores do que no Brasil.
Só em 2021, os CEOs das cem maiores empresas americanas receberam juntos cerca de R$ 11,2 bilhões. No topo da lista está Patrick Gelsinger, executivo da Intel, que sozinho embolsou mais de R$ 890 milhões no ano, de acordo com dados da consultoria Equilar.
Para Gedeão Locks, pesquisador do CES (Centre d’Économie de la Sorbonne), em Paris, a remuneração da alta liderança corporativa atingiu níveis estratosféricos, o que não é justificado por nenhum outro mecanismo ou fator previsto pela teoria econômica.
“É assim simplesmente porque não existe limite. Fica uma competição entre as empresas para ver quem paga o bônus maior e consegue pegar o CEO que é mais estrelado”, diz.
Na visão dele, a prática foi naturalizada socialmente, mesmo não havendo evidências de que ela pode trazer algum tipo de eficiência econômica.
“Se pegarmos os dados de companhias de capital aberto nos países ricos, [vemos que] esses pagamentos exorbitantes não são de fato compensação financeira, porque eles não se traduzem num desempenho melhor das empresas. Elas não criam mais empregos ou mais valor por pagar R$ 15 milhões em vez de R$ 2 milhões para um CEO.”
Locks afirma que, embora a desigualdade social seja uma questão complexa e multifatorial, há sim uma conexão entre os superbônus e a desigualdade social.
No entanto, ele se diz cético de que a solução virá do pelo próprio empresariado, dos acionistas ou de uma lei. O melhor caminho, ele diz, é pela via tributária, garantindo que quem ganha mais pague mais impostos.
QUAL A LÓGICA POR TRÁS DOS BÔNUS MILIONÁRIOS?
A maior parte do pagamento dos bônus não costuma ser feita em dinheiro, mas em ações da companhia (stock options, em inglês). Além disso, no caso dos incentivos de longo prazo, não é raro que a remuneração esteja vinculada a metas de desempenho.
O instrumento é bastante usado por companhias de alto crescimento por funcionar como um incentivo à alta liderança. Se as ações da companhia valorizam, o CEO ganha mais.
No caso do Nubank, por exemplo, mais de 85% da previsão de compensação em ações da diretoria depende da realização de metas.
Marco Santana, líder de remuneração e benefícios da consultoria Korn Ferry, diz que a divulgação de cifras milionárias costuma gerar confusão sobre o que de fato está sendo embolsado pelo executivo.
Segundo ele, é importante colocar os bônus em perspectiva, visto que esses pagamentos costumam representar 1% ou 2% do valor de mercado da empresa.
“O valor às vezes choca, mas quando pensamos que é em função de um resultado a ser atingido, [que vai ser] pago em ações, por cinco anos, e que a empresa vale R$ 80 bilhões, R$ 100 bilhões… Para mim parece bem razoável.”
Ainda assim, Santana diz que é preciso considerar a discrepância entre os salários dos executivos e o do restante da empresa —principalmente num país como o Brasil.
“A preocupação com esse gap [lacuna] de remuneração entre os mais bem pagos e os menores salários é um ponto fundamental. Precisamos reduzir esse gap”, diz.
É o que também pensa Carlo Pereira, diretor-executivo da Rede Brasil do Pacto Global, iniciativa da ONU para engajar o setor privado na adoção de práticas sustentáveis.
Segundo ele, o Pacto não entrou na discussão sobre restrição de bônus milionários, mas tem propostas para diminuir a lacuna entre a remuneração máxima de uma companhia e as remunerações média e mínima dos funcionários.
“Sem dúvida nenhuma, uma coisa que nos incomoda é essa diferença entre a alta liderança e a média dos funcionários”, diz. “Diminuir esse gap é uma maneira importante de reduzir a desigualdade —e [para conseguir fazer] isso tem que ter meta”, acrescenta.
COMO REDUZIR A DISCREPÂNCIA SALARIAL?
Atualmente, o Pacto Global tem procurado engajar o meio corporativo num movimento em prol do salário digno.
Diferentemente do salário mínimo, que busca garantir a subsistência, o salário digno parte do conceito de vida decente e saudável, observando aspectos como acesso ao lazer, cultura e outros itens importantes.
Um dos parâmetros costuma ser o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), que calcula o valor ideal para suprir todas as despesas de um trabalhador e de sua família no Brasil. Segundo cálculos de março de 2022, o salário mínimo ideal deveria ser R$ 6.394,76 —cinco vezes superior aos atuais R$ 1.212,00.
“Uma ação direta [que uma empresa pode adotar] para combater a desigualdade é pagar um salário digno. Com esse salário a pessoa consegue ter uma vida melhor não só para si, mas para toda sua família”, diz Pereira.
Na visão dele, essa é uma discussão muito incipiente no Brasil e que precisa amadurecer. Por enquanto, o Pacto pretende capacitar as lideranças e despertar as empresas para a importância do assunto.
“Vamos começar com baby steps [pequenos passos], apesar da urgência do tema, para ver como vamos conseguir avançar efetivamente”, afirma.