No mundo corporativo, além das discrepâncias de remuneração entre homens, mulheres e negros, contrastes também englobam c-level e o resto da equipe
Por Cláudio Marques e Eliane Sobral — Para o Prática ESG, de São Paulo
Em um mundo com tantas diferenças, a pauta da diversidade, equidade e inclusão é, certamente, uma das mais importantes na agenda ESG (sigla em inglês para se referir a práticas ambientais, sociais e de governança). No universo corporativo, um dos exemplos dessas assimetrias que precisam ser encaradas se manifesta na discrepância de remuneração entre funcionários e até entre fornecedores.
Embora os números possam variar, de acordo com o universo e a metodologia utilizados, as principais pesquisas sobre o assunto comprovam que gênero e raça afetam sim o quanto as pessoas ganham de dinheiro. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 mostram que as mulheres recebem 20,2% menos que os homens e a hora de trabalho de uma pessoa preta vale 40,2% a menos do que de uma branca. Comparando remuneração de homens brancos e mulheres negras, elas ganham 46% menos. E há ainda a questão da maternidade. Estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de 2019 mostra que metade das mulheres grávidas foram demitidas em até um ano após a volta da licença maternidade.
Nas empresas, a desigualdade de remuneração está intrinsecamente relacionada aos cargos que os grupos minorizados ocupam. Estudo da auditoria Grant Thornton de 2021 com 250 empresas no Brasil mostra que as mulheres ocupavam só 38% dos cargos de liderança no país. E representavam apenas 14,3% dos assentos em conselho de administração, segundo a consultoria Spencer Stuart. Os negros têm ainda uma grande dificuldade de quebrar a barreira de 5% de cargos C-Level e em conselho, segundo o Índice de Equidade Racial Empresarial (IERE). Como cargos mais elevados tendem a pagar mais, o menor espaço para mulheres e negros em posições de liderança se reflete na remuneração média desses grupos.
A discrepância ocorre até no topo da pirâmide. No Brasil, a diferença de ganho entre um CEO e um diretor pode ser 28 vezes superior, de acordo com o levantamento feito pela Comdinheiro a pedido do Prática ESG (confira a reportagem Remuneração muito desigual entre topo e a base pode gerar problemas para empresas).
A ocorrência ainda frequente, porém velada, de salários diferentes para pessoas nas mesmas funções agrava o quadro. Pesquisa do site Banco Nacional de Empregos (BNE) divulgada em 2022 aponta diferença máxima de remuneração de 63,2% para trabalhadores homens e mulheres de TI que atuam como desenvolvedores front-end. As outras maiores discrepâncias referem-se aos cargos de técnico administrativo (58%), gerente geral (57,9%), supervisor de produção (56,3%) e supervisor de vendas (43,4%).
“Existem no Brasil leis que garantem direitos iguais para homens e mulheres independentemente de sexo, cor e outras diferenças. Porém, não é fácil fazer valer na prática”, afirma Priscilla Carbone, sócia de direito trabalhista do Madrona Advogados, citando o artigo 5º da Constituição Federal e o artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho, que determinam salários iguais para funções idênticas independentemente de sexo, nacionalidade e idade.
“O que vemos são empresas enquadrando homens e mulheres em cargos diferentes. Por exemplo, o homem é contratado como analista sênior II e a mulher como analista júnior, ganhando bem menos que ele para exercer as mesmas atividades, responder às mesmas pessoas e/ou gerenciar times de tamanhos semelhantes. Isso dificulta o questionamento e apuração na Justiça”, diz Carbone.
“Quando comparamos o salário de executivos em cargos iguais, e empresas de portes iguais, vemos que, sim, há diferença. Mas ela é, em média, de 5%, em favor dos homens”, diz Milene Schiavo, diretora de Diversidade, Equidade e Inclusão na consultoria organizacional Korn Ferry. Segundo ela, estudo mostram que, em 2020, a diferença salarial era de 13%, em média. Em 2021, caiu para 7% e chegou aos 5% em 2022.
Há setores mais desequilibrados em gênero do que outros. O Índice ESG de Equidade Racial (IEER), desenvolvido por econometristas do Insper para medir o desequilíbrio racial de uma empresa, trouxe que, dos 25 setores da economia, nenhum está em nível equânime de raça. Para isso, é preciso chegar à nota “0” – o índice vai de -1 até +1, sendo que quanto mais próximo do “-1” mais branca é a organização, e do “+1”, mais negra. No setor financeiro, por exemplo, há lugares com notas coladas ao -1.
Ao mesmo tempo, levantamentos mostram que os homens são promovidos, em média, dentro de dois anos, enquanto as mulheres podem demorar cinco anos. Fernando Furtado, diretor de Remuneração Executiva na Korn Ferry, diz que, em geral, os homens pedem mais promoções do que elas e são mais assertivos na hora de pedir aumento de salário. “Sem querer generalizar, as mulheres são mais tímidas nas reivindicações, e isso acaba não ajudando muito na aceleração da ascensão profissional”, diz ele.
Diretora associada da consultoria Robert Half, Maria Sartori lembra que a contratação de uma mulher já se dá em desvantagem em termos salariais. “A negociação salarial é sempre feita com base no último salário da profissional. E quando ela entra naquele ambiente, que tem outros profissionais homens, ela já está naturalmente abaixo”, afirma.
O tema, porém, ganha mais espaço com empresas procurando reduzir essa distância, comprometendo-se publicamente com movimentos como o Pacto de Promoção da Equidade Racial, o Movimento pela Equidade Racial, o trio Elas Lideram 2030, Raça é Prioridade, Salário Digno do Pacto Global da ONU no Brasil, e até colocando diversidade entre as metas atreladas a remuneração de executivos e juros de emissões de dívida corporativa.
No entanto, na visão do diretor executivo da consultoria Michael Page, Lucas Oggiam, poucas empresas têm “trabalhado sério” o equilíbrio de gênero e, menos ainda, o de equiparação salarial. “Mas, sem dúvida, nestes últimos três, quatro anos, está havendo uma evolução, especialmente por pressão das empresas de capital aberto”, afirma. “Mas este ainda é um tema secundário.”
A produtora de alumínio Alcoa iniciou em 2020 um processo global de revisão salarial. “Identificamos que a diferença de salário entre homens e mulheres era de 10%. A partir daí, implantamos um processo de ajuste anual com base no mercado”, afirma André Rolim, diretor de Recursos Humanos da empresa. Na prática, isso significa que a empresa vai equalizar todo os salários com os valores pagos pelo mercado.
“Verificamos quanto o mercado está pagando para as mesmas posições que oferecemos, independentemente de quem ocupa o cargo”, explica. Por exemplo, constata-se que a média do mercado é, por exemplo, ‘100’ para uma posição ocupada por três pessoas na Alcoa. Uma recebe 95% de ‘100’, outra 90% e outra 75%. Todas, no entanto, devem ser ajustadas. “A pernada de aumento de quem recebe 75% será maior em relação aos outros dois, mas todos serão reajustados. Nossa filosofia é pagar o valor de mercado daquela posição”, diz. A medida tende a contribuir para haver equidade salarial, a despeito de gênero ou raça. “Hoje, a diferença salarial entre homens e mulheres é de apenas 2%, em nível global”, diz.
A meta da Alcoa é ter, até 2030, 50% de mulheres em cargos de liderança face aos 34% atuais. Hoje, elas já são 25% do total de 3.151 colaboradores diretos da empresa e 34% das posições estratégicas da companhia são ocupadas por profissionais do sexo feminino.
O iFood, que busca até o final deste ano atingir 50% de mulheres e 30% de pessoas negras em cargos de liderança (em cargos de coordenação ou superiores), se debruça sobre a questão da equidade salarial desde 2020. “Hoje, intencionalmente, na avaliação de desempenho, nosso algoritmo faz recomendações para que a liderança faça algum tipo de movimentação [salarial], caso necessário”, afirma Alinne Coviello, líder de Cultura, Comunicação Interna e Diversidade. Na prática, significa apontar, por exemplo, que uma funcionária deveria ganhar um reajuste maior do que seu par homem, de forma a compensar a diferença entre eles, caso exerçam funções similares.
As avaliações também podem contribuir para essa diferença. “Percebemos que os homens tendem a ter, nas avaliações de desempenho, notas cerca de 9% melhores que mulheres. As mulheres negras, ficam 11% abaixo deles. Trabalhamos para remover esses vieses deixando, por exemplo, para o algoritmo escolher quais as melhores pessoas para avaliar seus colegas, a partir de quantidade e tempo de interação”, conta Gustavo Vitti, vice-presidente de Pessoas e Sustentabilidade da foodtech. “Mas já temos o mindset de equiparar o salário daquela mulher que chega à empresa com um salário mais baixo dentro do que hoje temos aqui no iFood, para termos equidade”, diz Coviello.
O estudo Global Female Leaders Outlook 2022, da consultoria global KPGM, ouviu 884 mulheres líderes empresariais em todo o mundo, sendo 44 no Brasil, e 32% delas consideram que falta transparência por parte das empresas em relação à equidade salarial. Para 96% das executivas brasileiras ouvidas, há necessidade de trabalhar mais profundamente para construir uma cultura com paridade de gênero, diversidade e inclusão nos níveis mais altos das empresas. “É importante que, cada vez mais, as empresas saiam do discurso e adotem práticas para que possam ter um avanço melhor em relação à diversidade, equidade e inclusão, principalmente em relação à equidade de gênero”, diz Janine Goulart, sócia da KPMG e líder do Know, o programa de equidade de gênero da consultoria.
O salário digno, renda mínima necessária para um trabalhador satisfazer suas necessidades básicas, por exemplo, também deve se tornar uma pauta cada vez mais importante à medida que os direitos humanos começam a ser mais cobrados dentro da agenda ESG das empresas. (Colaborou Naiara Bertão)