Neste artigo examino alguns pontos da extensa proposta de reforma da tributação da renda (68 artigos e algumas centenas de outras normas, incluindo uma mixórdia de sibilinas revogações), encaminhada ao Congresso Nacional.
Em linhas gerais, o projeto de lei é uma requintada combinação de ressentimentos, desinformação e demagogia, resultando na mais ousada pretensão de aumento da carga tributária nos tempos recentes. Faz lembrar a descrição do inferno feita por Dante, em A Divina Comédia: é o caos impiedosamente ordenado.
A vitrine do projeto, consistindo na elevação do limite da isenção do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF) para R$ 2.500,00 mensais, tem motivação declaradamente eleitoral, o que não pode ser tomado como pretexto para desqualificar a iniciativa, mas a macula.
Mais importante, entretanto, é aquilatar os efeitos dessa elevação, minimamente em relação ao universo, certamente grande, de contribuintes que ficarão isentos de declarar. Esses contribuintes terão, no máximo, um modestíssimo ganho mensal de R$ 7,50, o que não dá sequer para comprar um quilo de pão francês.
Para compensar a significativa perda de arrecadação decorrente desse pífio ganho individual do contribuinte concebeu-se, meticulosamente, uma usina de maldades para outros contribuintes, a começar pela vedação à opção pelo desconto simplificado para as pessoas físicas com rendimento anual entre R$ 40 mil e R$ 83,7 mil, que em significativa maioria fazem uso daquele desconto. Em outras palavras, haverá aumento da tributação sobre a classe média, quando se alardeia, sem nenhum pudor, que não haveria aumento de carga tributária.
Esse aumento de tributação, todavia, não se restringe apenas à classe média, mas a um expressivo número de empresas.
Gerou-se, no País, uma polêmica insubsistente sobre a tributação de dividendos, talvez induzida pelo erro de qualificar como isenção o que de fato é uma tributação exclusivamente na pessoa jurídica, tal como ocorre com determinadas aplicações financeiras.
Ao optar por investimento em uma empresa, o investidor almeja retorno, que se efetiva por meio da distribuição de dividendos. Esses, por sua vez, têm seu valor afetado pela tributação no lucro e na distribuição.
Portanto, exsurgem três possibilidades: a tributação exclusivamente no lucro ou na distribuição dos dividendos, ou em ambos os casos. A opção por uma dessas formas de extração tributária é uma questão estritamente técnica.
A tributação exclusivamente do lucro tem óbvias vantagens sobre as outras duas opções: é mais simples, previne a evasão mediante distribuição disfarçada de lucros de dificílimo controle, não se sujeita a restrições (temporárias ou não) aplicadas à distribuição de dividendos e favorece a liberdade econômica ao permitir que o investidor reinvista, invista em outra empresa, aplique no mercado financeiro ou até mesmo venha a consumir.
A opção pela tributação dos dividendos, como consta no projeto, se fez acompanhar de uma redução na alíquota aplicável ao lucro, o que constitui um reconhecimento tácito da intercomunicação entre a tributação do lucro e dos dividendos, observada uma equivalência de 1 para 4 entre as respectivas alíquotas.
Por essa razão, o projeto estabelece uma redução da alíquota-padrão do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, optantes pelo regime do lucro real, de 15% para 10%, que seria, em tese, compensada com a tributação de 20% na distribuição dos dividendos.
Ocorre que a redução se daria em dois anos: 2,5% em 2022 e os outros 2,5% em 2023. Resta óbvio que haveria aumento de carga tributária no ano eleitoral de 2022.
Se o setor imobiliário foi duramente atingido, como demonstra o tributarista Ricardo Lacaz Martins em artigo publicado ontem no Estadão, o agronegócio foi poupado, já que a proposta de instituição da contribuição de bens e serviços cumpre bem a insólita missão de prejudicá-lo.
Ainda tenho muito que falar sobre esse malsinado projeto de contrarreforma tributária.
*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)
O ESTADO DE S. PAULO