Após a divulgação do PIB do 1º trimestre, acirrou-se o debate fiscal no Brasil em função da alta do PIB nominal. A “inflação do PIB”, isto é, a variação do deflator do PIB, foi bem superior à do crescimento real. Um PIB nominal maior leva a uma melhoria pontual dos principais indicadores de política fiscal no Brasil: a dívida (líquida ou bruta) e o resultado primário como proporção do PIB.
Mas qual é, afinal de contas, a polêmica em torno do assunto? Há três linhas de argumentação. Um primeiro grupo defende que a melhoria fiscal aconteceu meramente em função da aceleração da inflação. Esse fato seria responsável não apenas por reduzir o valor real do estoque da dívida, mas por elevar a arrecadação tributária. Advertem que o governo voltou a ser “sócio da inflação”, expediente utilizado no período de alta inflação no Brasil. Entendem que os efeitos serão transitórios e que nada mudou de maneira estrutural no processo de consolidação fiscal brasileiro. Dessa forma, apesar da menor relação dívida/PIB a curto prazo, sua trajetória de longo prazo não foi alterada, pois o governo não recuperou a capacidade de geração de superávits primários. A alta da inflação vai ensejar aumentos dos juros cobrados sob o estoque da dívida, o que tende a piorar sua perspectiva de trajetória futura.
Existe um segundo grupo que ressalta que há um aumento importante do espaço fiscal de curto prazo, pois o maior PIB nominal – mesmo via aumento da inflação – reduziu o ponto de partida da relação dívida/PIB. Há pouco tempo, por exemplo, as projeções de dívida bruta para o final de 2021 situavam-se entre 95% e 100% do PIB. Atualmente estão em 82-83%. Essas condições iniciais são importantes. A alta da inflação não teria relação com as políticas do governo, mas sim com o cenário global, em que há forte retomada das maiores economias do planeta, com impacto altista nos preços das commodities. Esse fato beneficiou o Brasil via elevação dos termos de troca e, em última instância, elevou o deflator do PIB. Isso não seria necessariamente um problema, até porque o BC já vem elevando a Selic visando combater a alta de preços. Assim, a melhoria de curto prazo do cenário fiscal teria decorrido de “ventos favoráveis” do cenário externo.
No terceiro grupo predomina a visão de que o maior espaço fiscal de 2021 não se reduz apenas à aceleração da inflação, mas sim a uma combinação entre maior inflação, maior crescimento real do PIB e às reformas institucionais implementada nos últimos anos. Embora a inflação seja importante nesse processo, as expectativas de crescimento no curto prazo estão acelerando, e os marcos institucionais implementados nos últimos anos ensejam uma trajetória mais parcimoniosa das despesas frente ao aumento da arrecadação. Dentre esses marcos legais estariam a reforma do crédito direcionado, o teto de gastos, a reforma da previdência, dentre outras. Essa é a visão defendida pelos “governistas”. Tentando lançar luz nesse debate, recorremos aos fatores condicionantes da variação da razão entre dívida líquida do setor público e o PIB (DLSP/PIB) ao longo do tempo.
Primeiro, salta aos olhos que a despesa líquida de juros nominais foi sempre positiva ao longo de todo período. Isso significa que o pagamento de juros do governo brasileiro em decorrência de seus passivos é estruturalmente superior ao recebimento de juros advindo de seus ativos. Já o resultado primário contribuiu para reduzir o endividamento público entre 2002 e 2013. A partir do final de 2014, o cenário se inverte. Nem a introdução do novo regime fiscal em 2016 garantiu a volta dos superávits primários. A pandemia da covid-19, e toda expansão fiscal dela decorrente, levou a um amplo déficit primário em 2020. Outro fator que chama atenção é o PIB nominal. Enquanto o deflator do PIB contribuiu para redução da relação DLSP/PIB durante todo o período 2002-2021, o PIB real, a partir da desaceleração de 2014, da recessão de 2015-16 e do baixo crescimento desde 2017, passou a ter contribuição bem menor frente ao período 2002-2013.
Já o ajuste cambial representa os ganhos e/ou perdas patrimoniais advindos da variação da taxa de câmbio sob os ativos e passivos do governo em moeda estrangeira. A partir de 2006, quando o país se tornou credor externo líquido, movimentos de depreciação cambial passaram a contribuir para redução da razão DLSP/PIB, ao passo apreciações cambiais atuaram no sentido contrário. Chama atenção a diferença dos efeitos da depreciação cambial na DLSP quando se compara o ano de 2002 com os de 2015, 2018 e 2020. Acumular reservas internacionais elimina um importante canal de transmissão entre crises cambiais e fiscais.
Os demais fatores condicionantes classificados como ‘Outros’ (reconhecimentos de passivos contingentes, privatizações, ajuste de paridade e de caixa e competência), tiveram pouca influência na determinação da dinâmica dívida líquida. Até abr/2021, houve queda de 2,9 p.p. da relação DLSP/PIB frente ao final de 2020 (de 62,7% para 59,8%), com as seguintes contribuições: i) deflator do PIB: -2,0 p.p.; ii) primário: -1,0 p.p.; iii) ajuste cambial: -0,7 p.p.; iv) PIB real: -0,6 p.p.; v) outros ajustes e termo cruzado: 0,0 p.p. e vi) juros líquidos: +1,5 p.p..
Embora o deflator do PIB tenha sido o principal fator a contribuir para a redução da razão dívida/PIB em 2021, e certamente será relevante até o final do ano, não se trata de algo tão fora dos padrões históricos brasileiros. A recuperação da economia reduzirá o déficit primário e a alta do PIB real também será importante nesse processo. A elevação da Selic tende a contribuir para o crescimento da dívida via aumento da despesa com juros, e os movimentos do câmbio levam a posições parcialmente compensatórias entre fluxos (resultado dos swaps cambiais) e estoques (ganho e/ou perda patrimonial). Portanto, o maior espaço fiscal de curto prazo advindo dos “ventos favoráveis” do cenário externo pode, por um lado, dar mais margem de manobra para o governo atenuar os efeitos da pandemia, mas, por outro lado, não reduz a necessidade de consolidação fiscal de médio/longo prazo.
Gilberto Borça Jr. é mestre em Economia pelo IE-UFRJ
VALOR ECONÔMICO