Por Bianca Zanatta
Conheça o que é o hidden overwork; além das jornadas de trabalho estendidas e horas extras, profissionais gastam momentos de descanso para fazer cursos, se atualizar e ver e-mails de trabalho
Especializada em gestão de marketing e mídias digitais, a jornalista Anyelle Alves, de 24 anos, viajou para Arraial do Cabo (RJ) com um amigo nas últimas férias. A ideia era desplugar de tudo e relaxar, mas quando se deu conta estava trocando mensagens com os clientes pelo celular. E ela não é exceção. Hoje, qualquer um está sujeito ao que especialistas chamam de hidden overwork – ou sobrecarga invisível de trabalho.
Esse fenômeno consiste na prática de se dedicar a atividades e temas relativos ao trabalho nas horas de folga. Não se trata de jornadas estendidas ou horas extras, mas de usar períodos como férias, finais de semana ou o tempo de descanso noturno para se desenvolver profissionalmente ou continuar em contato com o ambiente de trabalho, por exemplo.
Esse movimento vai na contramão de parte da sociedade que quer ter mais qualidade de vida e reduzir o volume de trabalho. Mas, com a pandemia e o home office, essa prática aumentou, sobretudo porque muitos passaram a confundir trabalho e casa.
Os motivos que levam as pessoas ao hidden overwork variam. Há desde aqueles que aproveitam o tempo livre para fazer upskilling (desenvolvimento de habilidades), de olho nas rápidas mudanças do mercado (especialmente com a necessidade das empresas de se digitalizar) ou em uma eventual promoção, até os que apostam no “super preparo” para combater a síndrome do impostor no trabalho, problema que acomete principalmente as mulheres.
No caso de Anyelle, a explicação é um misto de auto exigência e gosto pelo que faz. Com isso, ela nunca tem descanso. Na rotina da semana, cuida de toda a parte organizacional durante o dia e acaba reservando o período noturno para falar com clientes e fazer reuniões. Já as férias ela vê como tempo disponível para se dedicar a cursos e mentorias e acaba separando de duas a três horas diárias para esse fim.
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“No começo, fazia por pressão. Estava desesperada por resultados e sentia que não conseguia descansar. Isso estava me afetando muito”, afirma. Agora ela diz que faz por paixão mesmo, mas busca se blindar contra maiores excessos. “Quando são umas 22h, tento me desligar de tudo. A ideia é me desconectar de verdade e sair totalmente do ambiente digital, principalmente das redes sociais”, revela a profissional. “Do contrário, não paro, não adianta. Quando você gosta do que faz, nem percebe que está passando do limite.”
Propósito ou compulsão?
Segundo Caroline Marcon, professora dos MBAs de Gestão Estratégica de Pessoas e Liderança da FGV-SP e fundadora da Marcon Leadership Consulting, o gatilho para a sobrecarga invisível de trabalho pode ser o estímulo pessoal, um sentimento de pressão do mercado ou até da própria empresa, mas há também um aspecto cultural.
“É inconsciente. Pode ser um comportamento que a pessoa nem escolheria, mas faz porque está programada e não percebe que pode ser um problema”, explica ela. Quando a iniciativa vem do propósito e da paixão, destaca a professora, a prática pode ser positiva. Mas se a sobrecarga vem no piloto automático, pode se tornar disfuncional, culminando em improdutividade e até burnout.
Foi o que ocorreu com o gerente-sênior de TI, Ricardo Sato, de 40 anos. Depois de se afundar num elevado volume de atividades, temas e tempo voltados ao trabalho, ele teve o diagnóstico de depressão e burnout, além de um início de gastrite. Para se recuperar, começou a fazer terapia há três anos. “Tudo isso me forçou a mudar um pouco, mas minha cabeça não para”, diz Sato. “Hoje a comunicação é multiplataforma e o tempo todo tem assuntos ligados ao meu escopo de trabalho. Desligar 100% é um esforço para mim.”
A separação entre o que é investimento pessoal na carreira e o que é trabalho é uma zona cinzenta, de acordo com o executivo, que tem buscado não misturar tanto a vida pessoal e familiar com a profissão nos momentos de folga. “Antes eu era puxado pelo mercado e pulava sem boia; hoje vejo a correnteza passando e quero pular, mas com a boia.”
Para quem está perdendo a mão com o hidden overwork, ele deixa a dica: “É preciso olhar para dentro. Parece frase pronta, e é isso mesmo. É começar com pequenos exercícios físicos diários, ler um livro aleatório, jogar videogame, cuidar do sono, fazer um detox digital. Tem várias maneiras de fazer a mente rodar em outra frequência”.
Para a especialista Caroline Marcon, uma das formas mais saudáveis de ser produtivo e ter bom desempenho na vida profissional é saber descansar. Ela cita como exemplo uma executiva que ela atende. “Sabe aquela pessoa que já fez todos os cursos, todos os MBAs, está sempre estressada e fica se perguntando que outro curso pode fazer? Eu falo ‘chega, vai andar no Ibirapuera – e deixa o celular em casa para não ouvir podcast’. Porque chega a um ponto em que a pessoa não vê outro recurso na vida que não seja o de adquirir mais conteúdo, mais informação. Quando atinge o nível da compulsão, é doentio”, destaca.
Podcasts no chuveiro
Na busca por informação e conhecimento, a publicitária Elis Comenalli, de 34 anos, ouve podcasts até no chuveiro. “São meu maior banco de dados de aprendizado, escuto tomando banho, treinando”, conta ela. “O universo das startups é muito dinâmico, muda a qualquer instante. Sempre tenho que ficar me atualizando.”
Ela conta que também participa de summits com mentorias e eventos relacionados ao trabalho em alguns finais de semana e que, apesar de ter consciência da importância de parar em algum momento, volta e meia se pega trocando figurinhas com outros profissionais da área nas horas vagas.
“Como a comunicação entre os membros é global e toda online, bobeou e eu estou pendurada no WhatsApp, Slack ou Podia, a qualquer hora do dia ou da noite”, confessa. “E faço completamente por amor. Saí do mundo corporativo super desmotivada e quando descobri as startups, me encontrei. Só que após as 22h, desligo tudo e vou para minhas coisas pessoais. Evito olhar, a menos que tenha uma bomba. Mas continuo ouvindo podcasts.”
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A professora da FGV-SP destaca que outro fator que leva algumas pessoas a continuar trabalhando no tempo livre é o receio de ficar por fora. “A gente chama de fear of missing out, que é basicamente o medo de estar perdendo algo, de deixar de ser relevante. Mas é preciso sair de cena, saber largar o osso”, aponta. “Já vi clientes trabalhando na cadeira do hospital; não respeitam nem a própria licença médica. Às vezes, a pessoa faz isso simplesmente porque quer mostrar que é comprometida. Então é importante se perguntar qual é a sua intenção ao responder uma mensagem no grupo do trabalho em pleno domingo, por exemplo.”
Recompensa no bolso
Coordenadora de TI em uma empresa financeira, Maria Cristina Gonçalves, de 41 anos, afirma que o que a leva a respirar trabalho até nas horas de descanso é uma combinação de fatores, que vão da cobrança dos superiores à responsabilidade de liderar um time de 20 pessoas. “Essa pressão tem me sugado bastante. Tenho um celular da empresa e um pessoal, mas acabo usando o mesmo para tudo.” Até quando não está envolvida na conversa, acaba ficando de olho nas mensagens, revela.
Tem ainda o fato de o marido também trabalhar com TI. “Nas horas vagas a gente vive trocando experiências sobre trabalho, mandando cursos um para o outro. Agora ele está fazendo pós, então estamos afundados na questão.”
Estava atrapalhando meu sono, não parava de brigar com as crianças. Prometi para mim mesmo que ia desplugar
Maria Cristina Gonçalves, coordenadora de TI
Ela conta que dois meses atrás, após a entrega de um projeto grande, sentiu-se completamente esgotada e pediu uma semana de férias. “Estava atrapalhando meu sono, não parava de brigar com as crianças. Prometi para mim mesma que ia desplugar.” Ela até que conseguiu, apesar de o chefe ter mandando uma mensagem no primeiro dia da folga para saber se poderia inscrevê-la em um curso.
“Voltei há dois meses e já estou pilhada de novo. Faço porque fico desesperada para cumprir as metas, que impactam diretamente na PLR (participação nos lucros da empresa). Existe uma recompensa financeira proporcional a essa sobrecarga. Então não diria que é por amor, mas mais uma obsessão. Não consigo largar mão”, reflete.
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