Nosso pleno emprego, ainda que venha a ser alcançado em breve, logo ficará para trás
A taxa de desemprego está caindo rapidamente no Brasil. Em agosto deste ano, ela foi de 8,8% da força de trabalho na série com ajuste sazonal, vinda de quase 15% no começo de 2021. Com o atual nível de desemprego, começaram a surgir análises que consideram que a economia brasileira finalmente estaria próxima de uma situação de pleno emprego.
Antes de prosseguir, é importante que o leitor tenha claro que pleno emprego não é um conceito físico (referente ao montante de pessoas que poderiam ser empregadas por volumes ilimitados de demanda agregada), mas sim um conceito econômico (montante de emprego que permite a economia produzir o máximo possível sem gerar pressões inflacionárias e/ou desequilíbrio expressivo nas contas externas).
As situações associadas ao pleno emprego da força de trabalho, infelizmente, costumam ter vida curta
Na prática, não é simples estimar a taxa natural de desemprego, que caracterizaria numericamente a tão almejada situação de pleno emprego. Existem diversos métodos para tal, mas todos cercados de muita incerteza, como é comum na mensuração de variáveis não-observáveis.
Uma maneira simples de encarar o problema consiste em comparar o nível atual da taxa de desemprego (como apontado, de 8,8%) com a média histórica dessa variável (9,6%, considerando a série da Pnad Contínua retropolada até 1995). Caso desconsideremos os anos recentes, muito impactados pela crise da covid-19, teríamos uma taxa natural de desemprego de cerca de 9,3% na média do período 1995-2019. Por esta ótica, a economia brasileira já teria ultrapassado o pleno emprego.
Utilizar a média histórica como referência para estimar a taxa de desemprego de equilíbrio poderia até ser válido se não houvesse ocorrido nenhum tipo de mudança expressiva nas regras de funcionamento do mercado de trabalho. Contudo, sabemos que não é o caso brasileiro.
Em 2017, uma ampla reforma trabalhista gerou mudanças institucionais, que devem ter reduzido a taxa natural de desemprego. Por exemplo:
1- aumentou a flexibilidade do mercado de trabalho formal, com a introdução da figura do trabalho intermitente e com a prevalência do negociado sobre o legislado;
2- reduziu a insegurança jurídica e o custo de contratação de trabalhadores com carteira assinada, por causa de um menor espaço para a litigância de má fé após a reforma;
3- enfraqueceu a atividade sindical, reduzindo o poder de barganha dos trabalhadores com o fim da contribuição sindical obrigatória; e
4- ampliou a possibilidade de terceirização de atividade-meio (impulsionando ainda mais a “pejotização”, que já vinha crescendo bastante com a criação do regime tributário MEI em 2008 e com a ampliação do escopo e faixas de faturamento do Simples em 2014).
Dois trabalhos recentes dão sustentação para a hipótese de efeitos baixistas da reforma trabalhista na taxa natural de desemprego. O primeiro, feito por economistas da USP e do Insper (Rafael Corbi, Renata Narita, Rafael Ferreira e Danilo Souza), estima que a redução do número de ações trabalhistas teria reduzido em 1,7 ponto percentual a taxa de desemprego de equilíbrio. O segundo trabalho, feito pelos economistas Bruno Ottoni e Tiago Barreira, estima uma redução de 1,2 p.p. a 3,5 p.p. (ponto médio de 2,4 p.p.), levando em conta os efeitos de reformas na Alemanha e na Austrália, semelhantes à brasileira.
À luz desses trabalhos, e ignorando outros fatores que podem ter aumentado a taxa natural (como a histerese econômica negativa, associada ao aumento do desemprego de longa duração desde 2016/17), a taxa natural poderia ter passado de 9,3% para algo entre 5,8% e 8,1% (ponto médio de 7%).
Aparentemente, os analistas do mercado financeiro e das consultorias parecem ter incorporado em parte esses efeitos em suas estimativas de taxa natural. As projeções de consenso para a taxa de desemprego no longo prazo coletadas pelo sistema Focus/BCB, que podem ser consideradas como referência daquilo que o “mercado” avalia que seja a taxa de desemprego de equilíbrio, e que estavam em cerca de 10% há alguns trimestres, chegaram recentemente a 8,5% (2026). Considerando o desvio-padrão dessas projeções (0,9 p.p.), teríamos um intervalo para a taxa natural de 7,6% a 9,4% (-/+ 1 d.p.).
Diante disso, não seria absurdo trabalhar com uma taxa de desemprego natural no intervalo de 7% a 8,5% da PEA. Na prática, significaria que, embora ainda exista alguma folga no mercado de trabalho, não estamos mais tão distantes de uma situação de pleno emprego da força de trabalho (depois de quase 7 anos muito aquém dessa situação). Talvez esse diagnóstico desperte incômodo em alguns colegas, pois o desemprego atual ainda é bem acima do observado entre 2012-2014 (quando estava em torno de 7% a 7,5%).
Mas o fato é que, naquele momento – e com o benefício do julgamento a posteriori – fica evidente que a economia brasileira estava superaquecida (isto é, acima do pleno emprego), com inflação de demanda em aceleração contínua, déficit externo elevado e crescente, dentre outros fatores.
Nesse debate, sentimos falta de um posicionamento do Banco Central. Nossa autoridade monetária ainda não publicou nenhuma estimativa própria de taxa de desemprego de equilíbrio. Isso seria importante, não somente para ajudar a coordenar as expectativas do mercado, mas sobretudo porque, desde fevereiro de 2021, nosso BC passou a contar com um mandato dual “light”, com um novo objetivo (secundário) de “suavizar as flutuações econômicas e fomentar o pleno-emprego”.
Seja como for, as projeções para a atividade econômica à frente sinalizam que deveremos voltar a nos distanciar do pleno emprego nos próximos trimestres, refletindo a própria postura bastante contracionista da política monetária doméstica, bem como a desaceleração da economia mundial. Tal como estudado em excelente artigo recente de Antonio Fatás, denominado “The Elusive State of Full Employment”, as situações associadas ao pleno emprego da força de trabalho, infelizmente, costumam ter vida curta.
Nosso pleno emprego, ainda que venha a ser alcançado em breve, logo ficará para trás.
* As opiniões aqui expressas são estritamente pessoais.
Ricardo Barboza é pesquisador associado do FGV- Ibre, professor do Ibmec e mestre pela PUC-Rio.
Bráulio Borges é pesquisador associado do FGV-Ibre e economista sênior da LCA e Mestre pela USP.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-brasil-esta-em-pleno-emprego.ghtml