Novas formas de trabalho e novos arquétipos sindicais

Por Antonio Carlos Aguiar

Pensar e conceituar o sindicato, tal como ao longo da história vem sendo feito, repetido, ensinado, aprendido e vivido, tem a ver com lógica advinda de um mundo analógico, onde questões de defesa laboral centravam-se neste contexto social linear.

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Por óbvio, de todo errado não está. Tampouco em completo desuso, uma vez que o mundo do trabalho ainda é — em grande parte — analógico, demandando, por isso mesmo, soluções ainda pautadas nesta forma de compreensão das coisas.

Mas essa constatação de nada serve para não enxergar o que nos está diante dos olhos.

Colocar uma venda analógica-linear para não querer ver um mundo digital e multidisciplinar é ter um “lado”. Um “lado” obscuro, disforme e desconforme com a realidade, unicamente sustentado por uma crença, que desagua na certeza da ignorância.

Sabedoria não tem lado.

“‘Quando você está acaloradamente discutindo não defende seu lado por achar que ele é o certo. Ao contrário, acha que é o certo por estar desse lado’ (…). Há pouco mais de uma década dois pesquisadores de Harvard bolaram um experimento engenhoso para testar se isso era verdade. Eles apresentavam duas fotos para que os voluntários escolhessem qual era mais atraente. Uma vez feita a escolha, os cientistas a entregavam nas mãos do sujeito para que ele olhasse novamente e explicasse o porquê de sua decisão. Sem saber, contudo, eles recebiam a outra foto, que não haviam escolhido. Quantos notaram a troca? Menos de 20%. A maioria absoluta não notava a mudança e passava a argumentar porque aquela pessoa era mais atraente na sua opinião. (…) Agora mais inacreditável ainda foi o resultado de uma pesquisa feita em 2018 por cientistas suecos, testando posturas políticas. Os voluntários respondiam a questões sobre sistema de saúde, educação e meio ambiente, dizendo se concordavam ou não com as afirmações de inclinação liberal ou conservadora. Da mesma forma, a resposta era manipulada, e pedia-se para que explicassem as razões de suas escolhas. Metade dos voluntários notou o truque. Mas a metade que não notou e acabou realmente mudando a sua opinião” [1].

Não à toa e com repercussões das mais trágicas, de uma hora para outra, uma avalanche de notícias falsas (chamadas de fake news) viraliza nas redes sociais rápida e exponencialmente.

Não se trata, portanto, de defesa de um lado, mas enxergar e vivenciar uma realidade: apinhada de mudanças.

E dentro desse vendaval de mudanças encontra-se o sindicato.

Um sindicato ainda com traços, características e “funções” atreladas ao arquétipo da linha de produção. Que vê e trata os trabalhadores como pessoas perfiladas, lado a lado, em frente a uma esteira. “A matéria-prima chega ao primeiro trabalhador, que executa sua tarefa e a passa em frente. O seu colega pega a matéria-prima (levemente transformada) e acrescenta mais modificações. E assim segue, passando de mão em mão, sofrendo cada vez mais interferências. Até que, na última etapa, o que era matéria-prima vira um produto finalizado, pronto para a prateleira. Sejam pessoas ou máquinas, seja o número de interações que a matéria-prima receba, seja o estado inicial, a lógica não muda muito” [2].

E é com essa lógica que os sindicatos ainda hoje, em pleno século 21, “funcionam”…

Tudo linear, repetitivo, segmentado e previsível.

Contudo, impregnado de vieses, que acabam por gerar erros específicos e identificáveis, justamente para os mecanismos que os retroalimentam.

Atualmente, não só as funções, profissões e cargos, mas, os próprios locais de trabalho são outros. Que o digam os nômades digitais [3].

No quesito família, também um retrato bem alterado socialmente se apresenta. Ela não é mais formada apenas por um pai, uma mãe e filho (s). O Censo de 2010 do IBGE mostra que a família brasileira se multiplicou, trazendo 19 laços de parentesco, contra 11 presentes no censo de 2000.

Não só a família, mas os membros dela e da sociedade como um todo, também se multiplicam em diversidade, em especial, quando o tema é gênero. Não há dúvidas. Estamos dentro de uma sociedade complexa, de diferentes e, agora não mais invisíveis, partícipes ativos.

“Sabemos que sempre foi pouco dividir a humanidade simplesmente em homens e mulheres. Não há, afinal, nenhuma época histórica em que as identidades de gênero não tivessem sido múltiplas. Em Nova York, porém, a Comissão dos Direitos Humanos decidiu por oficializar essa multiplicidade, rumo a um futuro em que todo mundo possa se sentir devidamente identificado. A lista completa reconhecida pela Comissão de Nova York segue abaixo, e foi traduzida dentro do possível. Vale uma visita ao Google para maiores dúvidas sobre cada termo: 1. Bi-Gendered (Bi-gênero); 2. Cross-Dresser; 3. Drag-King; 4. Drag-Queen; 5. Femme Queen; 6. Female-to-Male (Fêmea-para-macho); 7. FTM; 8. Gender Bender (Gênero fronteiriço); 9. Genderqueer; 10. Male-To-Female (Macho-para-fêmea); 11. MTF; 12. Non-Op; 13. Hijra; 14. Pangender (Pangênero); 15. Transexual/Transsexual; 17. Trans Person (Pessoa trans); 18. Woman (Mulher); 19. Man (Homem); 20. Butch; 21. Two-Spirit (espírito duplo); 22. Trans; 23. Agender (sem gênero); 24. Third Sex (Terceiro sexo); 25. Gender Fluid (Gênero fluido); 26. Non-Binary Transgender (transgênero não binário); 27 Androgyne (andrógena); 28 Gender-Gifted; 29. Gender Bender; 30. Femme; 31. Person of Transgender Experience (Pessoa em experiência transgênera); 32. Androgynous (Andrógeno)” [4].

A lista não é exaustiva. O Facebook, por exemplo, em 2014, já disponibilizava 52 opções… [5]

Acrescente-se a essa complexidade, o número de gerações que hoje convivem entre si: 1) Geração X; 2) Y (Millennials); 3) Z; e 4) Baby Boomers, ou seja, quatro gerações convivendo, estudando e trabalhando simultaneamente. A nomenclatura obedece a lógica relativa à data de nascimento, que marca o estágio geracional. Os Baby Boomers são os nascidos entre 1945 e 1964; depois, vem a geração X, que compreende o período de 1965 a 1984; seguida pela geração Y, formada pelos indivíduos que nasceram entre 1985 e 1999; e, por fim, a geração Z, que contempla os nascidos a partir de 2000. Mais do que uma classificação cronológica, as gerações são determinadas a partir do comportamento das pessoas que nasceram no mesmo período.

Toda uma diversidade complexa no meio de um universo laboral digital que muda diuturnamente. Todos juntos e misturados trabalhando e desenvolvendo novos modelos de prestação e entrega de serviços em velocidade e dinâmica digitais.

Rapidez, simplicidade e objetividade próprias de um mundo cravado neste “digital”.

As startups representam bem esse momento. A cultura da garagem, ou seja, onde uma ideia criada por amigos, numa garagem, tem a possibilidade (real) de tornar-se em pouco tempo um unicórnio (empresa com valor de mercado superior a um milhão de dólares) é o símbolo máximo deste deslocamento exponencial.

A lógica econômica está mudando também.

As fintechs são um bom exemplo disso. “Hoje, as startups do setor financeiro também querem explorar nichos — e causas. (…) há fintechs dedicadas a quem tem menos de 18 anos, a negros, à comunidade LGBTI+, a quem é de esquerda e para os interessados em apoiar organizações não governamentais (ONGs). Mas qual é o benefício dessas contas digitais de nicho? Diferentemente do que se pode pensar, uma fintech focada em um público específico não é só jogada de marketing. Esses negócios podem ajudar a financiar causas e a levar crédito para pessoas que são deixadas de fora pelos bancos tradicionais” [6].

Novos arquétipos.

O sindicato até então pautava sua atuação por meio dos arquétipos 1) do herói, que representava e trazia à tona todas as reivindicações da parte mais fraca na relação de trabalho: o trabalhador e do 2) fora da lei, que enfrentava as amarras institucionais do Estado, quando emparedava o trabalhador, dentro do seu universo de subordinação. O sindicato não se vergava a pressões; desafiava padrões instrucionais em busca de justiça e não necessariamente obediência à lei.

Tudo dentro de uma estrada linear que disciplinava as jornadas acima encabeçadas pelos arquétipos do herói e fora da lei.

Todavia, hoje, as jornadas são outras.

O trabalhador do século 21 pode ser definido como um homo zappiens, conceito utilizado por Venn & Vrakking para definir os alunos o século 21, mas que bem se enquadra ao trabalhador atual, na medida em que ele também é “direto, ativo, impaciente, incontrolável e, de certa forma, indisciplinado (…), que aprende muito cedo que há muitas fontes de informação e que essas fontes podem defender verdades diferentes” [7]e, como tal, não pode ser regrado por normas e/ou ditames próprios de um mundo linear.

Não dá para “rodar” o hardware de uma sociedade eminentemente analógica dentro do software desses novos trabalhadores e seus novos trabalhos. Dá pau.

No ecossistema trabalhista estão cada vez mais presentes atores com propósitos. Com viés transformador. Onde a transformação radical é o objetivo fundamental. Onde não há porque se prender a espaço, tempos, marcas e remuneração, se objetivos não são respeitados. Governança, ESG, Compliance, políticas de atração, engajamento, autonomia, experimentação, ativos alavancados, staff sob demanda, interfaces, pensamento efetual, algoritmos…

O sindicato deve se valer o arquétipo criador (onde há vontade há caminho). O Direito do Trabalho é transformador, cresce e se espraia de modo rizomático.

Várias definições de identidade neste ecossistema trabalhista são possíveis. Quando se limita apenas à celetização como o “melhor caminho”, como se qualquer outro obrigatoriamente se vestisse de uma capa de exploração, se despreza a alteridade.

Precisamos dar luz às trevas que sustentam a racionalização subjetiva desse entendimento próprio, que está preso às amarras do século passado; a um mundo analógico e linear, que está desaparecendo.

O arquétipo criador baseia-se nisso. Com base nesse vetor, o sindicato permeia e entra em metamorfose junto com outros atores presentes no ecossistema trabalhista: os coletivos sociais.

Sua função principal passa pelo status de centro de convergência de pessoas e práticas, poroso e catalisador em relação a outros coletivos, grupos e blocos de criação e comunidades. Somente assim poderá de fato e de direito atender aos reais interesses daqueles que representa.

A ideia desse viés coletivo sindical do século 21 não é apenas para servir de representante (como nos tempos analógicos) de um certo número limitado de trabalhadores (empregados) de um determinado setor, mas trabalhar na construção de um bloco de interesses, afetos, diálogos, experiências aos quais o maior número de trabalhadores adira, numa espécie de condensador, agregador de sujeitos e ideias.

Afinal, “um coletivo é um campo de troca privilegiado, uma concentração de encontros de intensidade distinta. (…) se articulam em função de uma afinidade que se concretiza em ações em tempos variados. (…) pela heterogeneidade necessária e pelas múltiplas velocidades que constituem um coletivo. E a manutenção da intensidade que atravessa um coletivo depende da possibilidade de suportar e fomentar a coabitação de velocidades distintas, presenças inconstantes e dedicações não mensuráveis em dinheiro ou tempo, uma vez que são as intensidades transindividuais que garantem a força irradiadora do coletivo” [8].

Outro arquétipo funcional imprescindível é o da diversidade chamado de Sindiversidade.

A união de e com outras entidades sindicais, oficialmente ou não, para atender ao maior número de pessoas (mesmo aquelas que não são empregados), funcionando, igualmente, para formação de seus quadros, por meio de parcerias estratégicas, com vários outros coletivos sociais, catalisando, facilitando e aumentando o centro trabalhista dos interesses, numa espécie de “guarda-chuva” desses coletivos sociais no campo laboral, com ideias, ideais e idealização relativas a pontos de vista diferentes, mas integrativos.

Tudo atento e convergente à alteridade cultural e estruturante deste mundo digital, pivotando crenças, resolvendo conflitos por meio de co-criatividade (atuação conjunta com outros coletivos) e quebrando paradigmas comportamentais analógicos, onde não couber coexistência com o digital.

Transformando, deste modo, o quadrado num redondo, mas, não a fórceps ou por meio de digressões interpretativas tortas, e, sim, pela simplicidade inerente ao mundo digital.

A característica das redes é estabelecer a “conexão entre coletivos em que os coletivos aparecem como uma tentativa micropolítica de sincronia com movimentos de redes que os ultrapassam e para as quais eles são fundamentais”. “O coletivo é um ponto na rede e, também, ele próprio uma rede. Na construção de redes, os coletivos aparecem como centros de concentração de ideias, pessoas, criação, forças de onde novas conexões podem sair para compor outras redes” [9].

Tudo de modo digital e por meio de um trabalho sistêmico de construção de conhecimento e representação coletivos, que vai além do sindicato em si, se estabelecendo uma espécie de crowdsourcing sindical, sistema de chamada aberta e democrática para participação daqueles que efetivamente querem contribuir. Dentro desse sistema subdividem-se outros integrativos, como: a) crowdvoting (votação); b) crowdfunding (obtenção de recursos: vaquinhas digitais para projetos de representação específicos ou para manutenção da estrutura; c) crowdsolving (solução de problemas; e) crowdsearching (encontrar algo), etc.

O mundo está veloz. Exige-nos alteridade-diversidade-representatividade. Algo como mesmo ouvindo e amando música clássica compreender a motivação e existência de fenômenos como Harry Styles e a acusação que lhe é feita de fazer queerbaiting.

Sim, queerbaiting, palavra que define uma pessoa que tenta se beneficiar de uma imagem queer (estilo de se vestir diferente do esperado em uma sociedade que determina ainda gêneros). Harry Sttyles usa vestidos, saias e unhas pintadas… A acusação que sofre tem a ver com uma eventual jogada de marketing para ganhar dinheiro e não defender efetivamente a causa LGBTI+.

É impossível defender interesses de coletivos sociais sem adentrar no novo. Nas novas discussões.

Não dá para ter um comportamento globin mode (esta palavra foi eleita a palavra do ano no dicionário de Oxford de 2022), vale dizer, autoindulgente, preguiçoso, desleixado.

Dentro dessa nova identidade sindical acomodam-se novas formas de trabalho. Acordos coletivos de trabalho que não se restringem a contratos de emprego. Atravessam zonas cinzentas ou cercadas de tabus de eventual “conflito de interesses” de trabalhadores que são mais trabalhadores do que microempresários ou simples associados. O espectro de alcance e acolhimento não é limitativo. O gênero trabalhador, tal como aquele ligado ao sexo não é binário. O sindicato evolui e se transforma. Torna-se digital.

https://www.conjur.com.br/2023-fev-16/antonio-carlos-aguiar-novos-arquetipos-sindicais

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