Não há nada que proteja uma estatal da tentação populista

Agora vai. Governo resolveu mostrar aos incrédulos que é liberal. Alguém compra isso? Por maior que seja o estado de negação, não dá. Foi preciso a desastrosa intervenção na Petrobrás para que muita gente acordasse, depois de mais de dois anos de ataques cotidianos às bases da democracia liberal e da sociedade plural, aberta e livre. Mas estava tudo bem, afinal, ainda tinha o “Posto Ipiranga” como fiador. Nem todas as evidências de que Guedes não implementou, nem vai implementar, nada do que prometeu foram suficientes para tirar muitos do torpor. Até que o presidente demitiu Castello Branco. De repente, as mentes se abriram. Descobriu-se que Bolsonaro é, de fato, Bolsonaro. Tosco, autoritário e intervencionista. Não se pode dizer que ele rasgou a fantasia, já que nunca se deu ao trabalho de vesti-la.

No atropelo para agradar caminhoneiros, desobedeceu às leis que regem as sociedades de economia mista e tomara que responda judicialmente por isso. Minoritários não querem saber de julgamento político, é jurídico mesmo. Engana-se quem acha que o grande perdedor foi a Faria Lima. Em um único dia, o patrimônio público derreteu. A perda do valor da participação da União nas estatais foi equivalente a dois anos de Bolsa Família. A lição deveria ter sido aprendida após os anos de PT. Mas populismo não tem ideologia.

Populistas abusam do Estado e aprisionam o povo. Só uma verdadeira reforma liberal pode combater essa doença ao diminuir o campo de ação das saúvas.

Para acalmar “os mercados”, o governo saiu anunciando privatizações. Acrescentou dezenas de concessões às centenas já existentes no PPI. De 8 em 8 km iremos asfaltar o País, é o lema. Em seguida, propôs uma medida provisória para incluir a Eletrobrás no PND e apresentou um projeto de lei para reestruturar e, não necessariamente, vender os Correios. Tudo já estava na agenda. Nenhuma estatal a mais.

Usar MP para privatizar é péssima ideia e precedente grave. Neste caso, é até inconstitucional. Por mais relevante e urgente que seja privatizar tudo neste País, a MP 1.031 não atende aos requisitos legais. Já havia um PL sobre o assunto que poderia receber emendas da base do governo.

A grande motivação de Bolsonaro não é diminuir o número de estatais, ele não se importa com isso. Ao contrário, precisa delas para negociar com seus novos aliados. A urgência dele é conseguir uma forma de cumprir com a promessa de reduzir tarifas. Como não entende nada do assunto, foi convencido que só com a capitalização da Eletrobrás isso seria possível. A MP aumentou o volume de recursos a serem transferidos para o fundo setorial (CDE) e, com isso, abater encargos e compensar subsídios, muitos deles desnecessários, que oneram as tarifas.

Mas isso não acontece da noite para o dia. Uma operação desse porte leva alguns meses e quando o dinheiro chegar será tarde para influenciar na campanha da reeleição. Ou esqueceram de avisar o chefe ou ainda vem algum truque por aí para antecipar o uso de recursos. Como o teto anda desmoronando, pode até acontecer.

O BNDES está autorizado a começar os estudos mesmo que a MP venha a caducar, o banco tem pelo menos 120 dias para terminar o trabalho. É um prazo curto. Tradicionalmente, leva 18 meses, em média. Tudo indica que vai acabar só por carimbar e, assim, dar auras de legitimidade a um processo predefinido. Não pode propor modificação alguma para aprimorar a venda. Para mudar algo, a lei também teria de ser adaptada e novo PL enviado. Segundo o secretário de Desestatização, caberá ao banco apenas o serviço de due diligence.

A venda da maior empresa de energia da América Latina demandaria um estudo mais profundo. No mínimo, deveria analisar o impacto de passar para o setor privado uma empresa que pode deter, sozinha, 40% do mercado. O Cade deveria participar. A democratização do capital não tem nenhuma relação com competição no setor de geração – elemento-chave para definição de preços, especialmente quando se espera um crescimento do mercado de consumidores livres. O BNDES também deveria analisar prós e contras de se antecipar a renovação de Tucuruí e, ainda, participar da estruturação da cisão, que manterá Eletronuclear e Itaipu nas mãos do governo.

Toda privatização enfrenta a decisão de múltiplos objetivos: deve priorizar o ganho para o Tesouro ou a redução das tarifas, em caso de serviços públicos. Mas deve ir além, contribuindo para o redesenho do setor aumentando a eficiência da operação. Não faz sentido simplesmente transferir tamanho poder de mercado do setor público para o setor privado, especialmente quando se trata de setor não regulado, como a geração de energia

Governo partiu para o tudo ou nada. Imagino que com risco calculado, já que incluiu novas transferências para fundos regionais para agradar à base. Se a MP caducar, acaba de vez. Mesmo discordando do modelo e do processo, é importante que essa privatização, e muitas outras, aconteçam para proteger o patrimônio público.

Não há lei, não há governança, não há nada que proteja uma estatal da tentação populista.

*ECONOMISTA E ADVOGADA

O ESTADO DE S. PAULO

Compartilhe