Tecnologia impulsiona demanda por qualificação sociocomportamental no mercado, com empresas em busca de pessoas com maior autonomia produtiva, mais inovadoras e resilientes
Por Glauce Cavalcanti — Rio
Alessandra Lotufo, da Bossa.etc: empresa de cursos específicos para grandes empresas em habilidades socioemocionais tem como clientes companhias como Magalu e Gerdau Divulgação
Com a acelerada digitalização, o mercado já disputa um novo tipo de profissional: o que se destaca em habilidades socioemocionais. Estão em alta as chamadas soft skills, que permitem às pessoas aprenderem a explorar e amplificar o uso das constantes inovações tecnológicas.
Em tempos de regime híbrido de trabalho, isso se traduz em autonomia para gerenciar as próprias tarefas, mas também em capacidade de aprender de forma contínua, de resolver problemas, ter pensamento crítico, criativo e inovador. Além de atuar com inteligência emocional, de forma colaborativa, mantendo resiliência e tolerância ao estresse.
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Com isso, avançam novos cursos de qualificação. Laís Vasconcelos, especialista em recrutamento da Robert Half, explica que a pandemia trouxe de forma mais recorrente a demanda por profissionais mais resilientes, com boas habilidades em comunicação, adaptabilidade e autonomia:
— As competências comportamentais já são um dos principais pontos de alinhamento de vaga. Já falamos mais pelo comportamental do que pelo técnico, que em muitos casos se ensina.
Empresas que ainda não enxergaram isso, continua ela, vão ficando para trás, tornando-se obsoletas. É que, nesse novo mercado, valorizar colaboradores considerando o aspecto comportamental é, além de uma demanda e ferramenta de boa gestão, chave para atrair e reter talentos.
— Quanto mais soft skills os profissionais têm, mais a equipe é alinhada e produtiva. Porque isso possibilita um ambiente de criação, inovação, liberdade e confiança. Permite entregar mais e com qualidade — diz Laís.
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Essa transformação permeia todas as categorias de uma empresa, do alto comando ao chão de fábrica e até o contato com o consumidor.
Vetor de saúde mental
A Bossa.etc, de cursos voltados a habilidades socioemocionais específicos para grandes empresas — com clientes como Gerdau, Heineken e Magazine Luiza —, registra alta de 80% na demanda por qualificações que ajudem no desenvolvimento de capacidades ligadas à gestão de problemas complexos, incertezas e adaptabilidade, conta a fundadora Alessandra Lotufo:
— Em pouco tempo, passamos a ter uma geração híbrida e tendo de aprender numa velocidade impossível para o cérebro humano. Isso gera ansiedade. As soft skills são vetores de saúde mental, caminho para navegar nesse ritmo insano.
Alessandra diz que produtividade, hoje, tem de combinar habilidades técnicas, relações humanas e saúde mental:
— Sem esse equilíbrio, desanda. O burnout vem da incapacidade da pessoa de lidar com a quantidade de demandas e de equilibrá-las com a vida pessoal. Isso resulta em afastamento das atividades.
Diretora de Recursos Humanos da Bradesco Seguros, Valdirene Secato chama atenção para o papel da liderança:
— As soft skills são importantes para levar a companhia para o futuro. Se o líder não for mais empático, levando a equipe de forma criativa, não consegue gerenciar.
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São mudanças vindas a reboque da dissolução do limite entre os campos pessoal e profissional durante o trabalho híbrido na pandemia, pondera Giovane Coutinho, gerente de Educação Corporativa da Raia Drogasil.
— Na liderança, isso demanda interação, um certo nível de conflito. O líder precisa desenvolver outras questões, sobretudo vulnerabilidade. No passado, ele era a experiência, não errava. É difícil convencer a geração X a errar. Agora, o líder tem de se mostrar vulnerável, dizer que não sabe algumas respostas e fazer com que seu time entenda que pode buscar essas respostas, sugerir, criticar.
Ele diz que, na companhia, o volume de treinamentos em soft skills pelo menos dobrou nos últimos três anos.
Já é prática em diversos setores. A Enel Brasil, por exemplo, da área de energia, terá 10% das horas de treinamentos a seus colaboradores voltadas para apenas para soft skills até o fim do ano, o equivalente a mais 40 mil horas de treinamento.
A plataforma on-line de educação e desenvolvimento de carreira da companhia tem 150 conteúdos, entre cursos, vídeos e ferramentas de aprendizagem, que abordam competências comportamentais, informou a empresa.
Seleção assertiva
Mudar comportamento é mais difícil que mudar processos, frisa Laís, da Robert Half, daí o protagonismo das soft skills. Por isso, as empresas têm de reforçar sua cultura, focando em profissionais alinhados com seus propósitos. É o que ocorreu no Magazine Luiza, conta Patrícia Pugas, diretora executiva de Recursos Humanos da companhia:
— Percebemos que havia uma assertividade grande dos trainees com a cultura da companhia, porque havia uma dedicação adicional em buscar esse alinhamento comportamental. Estendemos isso a todos os nossos processos seletivos. O resultado é uma equipe melhor direcionada ao propósito da organização.
Ela frisa que o processo tem de ser repetido nas seleções internas, abrindo possibilidade de ascensão e mobilidade de carreira entre áreas e funções.
Fernanda Aparecida dos Santos, analista do Serviço de Atendimento ao Consumidor do Magalu, por exemplo, recebeu uma reclamação da cliente Caroline, em outubro passado. Ela aguardava a entrega de um livro de assinaturas para usar em seu casamento, dali a quatro dias, mas sem previsão de entrega.
Fernanda é treinada para resolver o problema e surpreender o cliente. Mas a ideia para fazer isso tem de partir dela. Assim, conversou com Caroline e mandou confeccionar um outro livro de assinaturas, com entrega feita a tempo para o casamento. A última página foi assinada pela equipe de atendimento da varejista, acompanhada de mimos aos noivos.
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— A Carol estava vivendo um dos momentos mais importantes da vida dela. Então, tentei fazer tudo o mais próximo de como ela havia escolhido para que seu dia fosse perfeito — conta Fernanda, que se casou em junho e recebeu parabéns e presente de Caroline.
A ESPM também viu crescer a demanda por cursos em habilidades sociocomportamentais nos últimos dois anos, sobretudo os de curta duração e de extensão.
— É um termômetro das dores nos profissionais no mercado. Em julho e agosto, são mais de 150 cursos imersivos de até uma semana de duração. Destes, mais de 20 são em inteligência emocional, social, liderança e gestão de pessoas — conta Caio Bianchi, gerente de Educação Continuada da ESPM.
Indústria também se ajusta
Felipe Morgado, superintendente de Educação Profissional e Tecnológica do Senai, avalia que é preciso ter qualificações combinadas:
— Temos de ter aprendizagem ativa, incessante. As soft skills são competências importantes para a indústria 4.0. Mas não acredito em cursos focados unicamente em socioemocional. Acredito em casar técnico e emocional, atuando de maneira transversal. Nos processos de seleção, já temos uma plataforma que cruza competências técnicas, socioambientais e o currículo.
Ele avalia que o novo ensino médio oferece uma oportunidade para o Brasil ao permitir levar o ensino técnico e profissional com desenvolvimento de habilidades comportamentais para as escolas.
— Se isso ocorrer, no médio prazo, as empresas já vão receber funcionários mais qualificados — afirma Morgado.
Vanessa Mendes Vieira da Silva, de 19 anos, já está nessa jornada. Ela é ex-aluna do Sesi/Senai e fez o curso técnico de Análise e desenvolvimento de sistemas no ensino médio, num currículo que conta com qualificação socioemocional. Com outras duas amigas, ela criou um aplicativo, o Bilinguismo, tradutor de Libras em tempo real.
A estudante de Campinas, interior de São Paulo, ingressou também num projeto robótica, tendo participado de eventos e competições aqui e internacionais. Em março deste ano, começou a trabalhar na Bosch, por meio de uma parceria que a companhia mantém com o Senai para contratar jovens aprendizes.
— Aprendi a atuar em redes, fazer jornadas longas em equipe. Isso traz muito amadurecimento num tempo curto. Há cobranças e é preciso desenvolver habilidades emocionais para lidar com a pressão e também entregar o que esperam de você — diz Vanessa, que cursa Sistemas de Informação na PUC-Campinas.