O Magazine Luiza acaba de concluir o processo seletivo para a edição de 2021 de seu programa de trainees, aquele que foi alvo de ataques nas redes sociais porque decidiu contratar apenas profissionais negros desta vez.
O barulho das críticas após o lançamento da iniciativa, em setembro, contribuiu para turbinar o número de inscritos, superando os 22,5 mil candidatos. E, com uma oferta de talentos maior, a empresa vai contratar 19 trainees, em vez de cerca de 10, como o habitual.
Esta será a maior turma de trainees formada pela companhia. Como base de comparação, o programa do ano anterior, que seguia o padrão de mercado sem a temática racial, teve menos de 18 mil inscritos, com 12 selecionados.
A quantidade de candidatos de nível excelente foi muito grande, segundo Patricia Pugas, diretora-executiva de gestão de pessoas da empresa.
“Gente boa a gente quer, ainda mais para cumprir um propósito que, para nós, é relevante, de ajustar a diversidade racial na liderança. Nunca fechamos que só poderíamos contratar dez. Era só a referência. Sempre tivemos claro que, se tivesse mais candidatos excelentes, nós contrataríamos”, afirma.
O Magalu já vinha tentando fazer movimentos para elevar a participação dos negros em postos de chefia, e o programa de trainees (que forma jovens com potencial para atingirem os cargos no futuro) era visto como o caminho natural. Mas ainda havia a dificuldade de atrair os candidatos, segundo Pugas.
Em edições anteriores da seleção, a companhia já não exigia inglês fluente nem experiências internacionais com intercâmbios, critérios que costumam funcionar como barreiras para a entrada de profissionais pretos e pardos. Apesar disso, os candidatos negros permaneciam escassos, diz a executiva. “Os que vinham eram excelentes, mas eles não apareciam em grande volume”, afirma.
Desta vez, além da repercussão que acabou ajudando a expandir o alcance do projeto, a empresa montou uma estrutura para tentar romper obstáculos que impediam o jovem negro de se candidatar por outros motivos.
É o caso de Marina Maia, 30, formada em relações internacionais pela Universidade Federal de Sergipe em 2019. Ela levou um currículo com promoções em empresas do porte de Uber e James Delivery, além de projetos sociais com povos indígenas e estágio em escritório de advocacia da época em que começou a cursar faculdade de direito.
A despeito da trajetória, Maia afirma que tinha crenças limitantes.
“Eu tinha muita resistência em tentar processo de trainee pela minha idade. Eu estava mais velha e me sentia muito desconfortável”, diz.
Geralmente, os programas de trainee de grandes empresas preferem candidatos formados há dois anos ou menos. O Magalu expandiu esse prazo para três anos.
A medida desimpediu a entrada de Cleison Xavier, 30 anos, que começou a vida com curso técnico em metalurgia em Ouro Preto (MG), onde também fez Senai ao mesmo tempo que passou em concurso público para auxiliar administrativo e depois se mudou para fazer a graduação de engenharia mecânica na Universidade Federal de São João del-Rey.
Na faculdade, Xavier participou de competições para a construção de protótipos de engenharia, fez estágio na cidade vizinha, ganhou uma bolsa de estudos de 50% na Inglaterra, conseguiu lugar para se hospedar de graça e pagou o restante dos custos da viagem com as economias do trabalho.
Na volta, após a formatura, ele conseguiu empregos como responsável técnico em indústria, ingressou no mestrado e, no ano passado, foi parar no Itaú, em São Paulo. Tentou concorrer às vagas de trainee do banco, mas foi eliminado sem nem poder participar da seleção.
“Um dos pré-requisitos do programa [do Itaú] era a data de formação em dezembro de 2018, e eu me formei em agosto de 2018”, afirma Xavier.
As particularidades do programa de trainees da Magalu para negros foram pensadas há mais de um ano. Segundo Pugas, não teve um aumento de custo significativo do ponto de vista financeiro, mas o investimento de esforços foi maior.
O planejamento contou com a ajuda de profissionais especializados no tema, mas também teve a participação de ex-trainees e outros funcionários negros que já trabalham no Magalu hoje, como o gerente de pesquisa e desenvolvimento Robson Santos, que foi convidado para discutir a campanha e depois participar de uma das peças publicitárias.
Quando consultado, Santos afirma ter sugerido que a empresa evitasse fazer a publicidade com uma linguagem assistencialista.
Antes mesmo dos ataques na internet, já havia dentro do Magalu a previsão de que se poderia desencadear uma repercussão com ofensas racistas. Quando o conceito do projeto estava de pé, no primeiro semestre, a empresa contratou a consultoria Indique uma Preta.
“Nós entramos para fechar o tom de voz nas redes sociais, para fazer uma estratégia de contenção de crise e de reação, como os argumentos para responder a questões desde ‘isso é racismo reverso’ até sobre colorismo ou coisas como as pessoas acharem que a Magalu estaria levantando bandeira partidária. Pensamos o tom, treinamos pessoas de SAC e o que responder”, diz Daniele Mattos, cofundadora da Indique uma Preta.
Internamente, a companhia também afinou a postura da direção, que é majoritariamente branca. As lideranças passaram por um processo de letramento racial.
“Infelizmente, não é todo o mundo que sabe o que é lugar de fala ou racismo estrutural”, afirma Patricia Pugas.
O próprio processo seletivo também passou por adaptações. Uma das etapas ganhou um jogo de enigma com questões sobre diversidade, e a maior parte dos profissionais que atuaram no atendimento dos candidatos são também negros e pardos, inclusive na 99jobs, empresa de recursos humanos contratada para ajudar.
Aos candidatos que não passaram nas fases de dinâmicas de grupo e entrevistas com diretores foi oferecido um feedback individual personalizado por chamada de vídeo ou telefone, em vez de apenas um email comunicando a reprovação, de acordo com Michele Machado Bernardo, analista de recrutamento e seleção do Magalu.
“A gente fez lives antes com os candidatos explicando como seria o processo. Mostramos quem seriam as pessoas envolvidas na seleção e quem eram os trainees negros que já tinham entrado antes, para eles verem que já havia isso na empresa”, afirma a analista.
As mudanças planejadas para esta edição do trainee se estenderão no pós-contratação, com ajudas de custo, além do salário de R$ 6.600.
Segundo Patricia Pugas, a companhia pensou em sutilezas como os reembolsos recebidos por colaboradores para cobrir despesas de viagens. No caso dos novos trainees negros, o recurso será antecipado.
“Não se pode dizer que todo preto é pobre. Mas sabemos que as questões sociais estão, sim, associadas às raciais. Não se pode desconsiderar isso quando se quer fazer ação inclusiva. Às vezes, eles precisam sair da casa onde são arrimo de família. Tem questão de conforto, de roupas, de apresentação pessoal para se sentirem melhor neste momento”, diz a executiva.
Também foi previsto um trabalho para a preparação do ambiente e a receptividade dos novos funcionários.
“Do ponto de vista de formação, estamos focando os desenvolvimentos socioemocionais. Estamos prevendo cursos de desenvolvimento na área de presença executiva. São coisas que, ao longo do processo, verificamos que são importantes para que essas pessoas se sintam bem e aflorem”, afirma Pugas.
FOLHA DE S. PAULO