O olhar do economista Marcos Lisboa para a economia do Brasil na pandemia é curto e direto: “O Orçamento de 2021 (em discussão no Congresso) reflete o desgoverno em que vivemos”. Ajuste fiscal? “É um espantalho para não se discutir o descontrole dos gastos públicos.” Qual a saída? “O que deveriam debater, de fato, é a influência da política pública na qualidade de vida das pessoas.”
Poucas pessoas no País dispõem da bagagem técnica e prática do carioca para falar de desafios nacionais como gasto público, reformas, pobreza e desigualdade. Tendo em mãos um doutorado da Universidade de Pensilvânia e aulas em Stanford, ele foi professor na FGV e passou boa temporada como diretor e vice-presidente do Itaú Unibanco. E, antes de entrar no Insper, que preside desde 2015, mergulhou na vida publica: no primeiro governo Lula, foi secretário de Política Econômica da Fazenda, aceitando o convite do então ministro Antônio Palocci.
Nesta entrevista para a série Cenários, ele critica a insegurança jurídica, os lobbies de corporações para que ninguém mexa com suas conquistas e bate o martelo no que considera o caminho a se tomar: “Tem de mudar o foco das políticas públicas. Esse foco tem de ser o cidadão”. A seguir, os principais trechos da conversa.
Já estamos em abril e o debate sobre o Orçamento não acaba. Por quê?
O Orçamento reflete o desgoverno em que vivemos. Tivemos um Orçamento obrigatório com as despesas subestimadas, para permitir emendas parlamentares – e parte delas era para atender a demandas de outros ministérios. Então,o ministério da Economia cria um Orçamento, o governo manda ao Congresso, mas outros ministérios discordam e pedem ao relator para incluir o que o governo deixou de fora. Isso é desgoverno.
Há quatro meses atuando sem Orçamento, como o governo funciona?
Funciona mais ou menos. Quer dizer, a gente tem visto dificuldades na saúde, na economia. Foi preciso aumentar os juros porque teve inflação e uma política conduzida de forma pouco cuidadosa no ano passado. O nosso câmbio, se o Brasil tivesse atuado como outros emergentes, seria de R$ 4,30, por aí, não de R$ 5,60 ou R$ 5,70.
O Brasil nunca conseguiu fazer um ajuste fiscal sério. Sem ele, qual é a perspectiva?
Acho que o ajuste fiscal no Brasil virou um espantalho para a gente não falar dos problemas. O problema não é o ajuste fiscal. Você tinha várias maneiras, por exemplo, de criar um auxílio emergencial focado de fato em quem precisa. Podia não ter feito emendas paroquiais para gastar dinheiro nisso e naquilo. Podia rever os subsídios concedidos. O dilema é outro. É escolher: a gente vai prejudicar pessoas hoje ou vai prejudicar amanhã? Estamos escolhendo amanhã.
Desde o fim da ditadura, quando foi que o Brasil conseguiu controlar os seus gastos públicos?
Tivemos um controle de gastos a partir de 1999, que continuou no primeiro mandato do governo Lula e permitiu a redução da dívida pública. Então, tivemos alguns anos de bom crescimento.
Fora do Brasil, o mundo também crescia, não?
Sim, havia um comércio mundial muito bom e o Brasil aproveitou. Agora, isso de focar a discussão na questão fiscal acaba sendo uma cortina de fumaça para não discutirmos o descontrole dos gastos públicos.
Como se ajusta isso?
Vamos lá. O Brasil aumentou sua carga tributária de 25% do PIB para 34%, de 1995 até agora. São 9 pontos a mais. O gasto público aumentou muito mais que isso. Por que a educação no País não melhorou se estamos gastando mais? É que nós temos um problema sério: o gasto aqui é muito ineficiente. A gente gasta muito com salários, aposentadorias, e não faz gestão pública. Nosso debate é sempre sobre ‘quanto’ gastar, não ‘como’ gastar. Cadê o resultado do gasto? As crianças estão aprendendo mais? Quantas pessoas tiramos da pobreza?
Qual a saída?
Acho que vocês, da comunicação, têm um papel maior que o nosso. O problema é: vamos começar discutindo o aprendizado dos alunos? Veja a resistência que surgiu para se criar um currículo mínimo comum para o Brasil inteiro… que todo mundo tem. Enfim, o debate não tem de ser sobre gasto, mas sobre a influência da política pública na qualidade de vida das pessoas. Se não for assim, veja no que dá: neste último Orçamento, vão R$ 44 bilhões para auxílio emergencial e R$44 bilhões para emendas parlamentares destinadas a obras paroquiais. Que preocupação social é essa?
Tem de perguntar ao Congresso.
Mas veja, não adianta culpar só o Congresso, pois o governo participou de parte dessa criatividade. E mais: Senado e Câmara são duas Casas eleitas por nós. O que não se espera é a ausência do Executivo para dar uma visão nacional.
O Judiciário tem recebido críticas. Como vê isso?
Com preocupação. No Brasil estamos reduzindo, cada vez mais e descontroladamente, a segurança jurídica. Liminar para cá, liminar para lá, esta lei se aplica, aquela não… Às vezes, é o contencioso tributário, em outras, a dificuldade de se construir uma fábrica. Vou lhe dar números. Nessa disputa entre o fisco e a sociedade, que é o chamado contencioso administrativo, a mediana do PIB na na OCDE é de 0,28%. Na América Latina, excluindo o Brasil, é menor ainda, 0,19% do PIB. E, no Brasil, ela chega a 15%. Isso vem de regras malfeitas, mudança de interpretação das normas, por aí. Desse modo, quem vai querer investir no Brasil?
Se tivéssemos de fazer um plano de ação para os próximos dois anos, por onde ele deveria começar?
Primeiro, acho que se deveria mudar o foco da política pública. Esse foco tem de ser o cidadão. Temos de avaliar a educação pelo aprendizado do aluno. Segundo, é preciso reduzir gastos obrigatórios com servidores da ativa e aposentados, sobretudo nos estados e municípios. Falo de servidores públicos não avaliados pelo desempenho, ou que se aposentam muito cedo, que têm promoção automática, que recebem quinquênios.
Mas como fazer para se mexer com isso? Só gritam os que são contra!
Acho que esse debate está começando a mudar. Foi o que se viu com a Previdência: a reforma veio com 20 anos de atraso, mas veio. Vou dar um pequeno exemplo de ineficiência a ser trabalhada. Muita gente defende a desoneração da cesta básica. No entanto, veja só, em 2017 o Ministério da Fazenda fez uma outra conta. Que tal reduzir essa desoneração da cesta básica – ou seja, ela paga mais imposto, não menos – e transferir esses recursos captados a mais para o Bolsa Família? Sabe qual seria o impacto disso? A desigualdade de renda no Brasil cairia 12 vezes mais que na solução anterior. Só com essa medida.
Ligado a esse tema está o da reforma do Estado. Por onde se começa a fazer essa ideia andar?
A reforma administrativa que estava sendo discutida no Congresso era muito tímida. Ali não tinha reforma nenhuma que valesse a pena. E muito menos preocupação com o cidadão.
Mas uma reforma tímida não é melhor do que nada?
Mas temos de escolher prioridades. Aquela mudança de foco de que falamos, do gasto voltado ao resultado para o cidadão, a construir regras de ascensão no serviço público condicionadas ao atendimento das necessidades da criança… isso, sim, é transformador.
Você já esteve no setor público, uns 3 ou 4 anos. Toparia voltar?
Olha, eu me sinto um servidor público. Apesar do meu discurso duro, às vezes, sobre corporações de servidores, tenho admiração pela política pública, que tem umas ilhas de excelência admiráveis. Mas há um movimento de massa das corporações que se tornou um entrave para o País. Manifestações por reajustes, no momento em que o Brasil vive uma recessão e com tanta gente desempregada? Mas vamos combinar o seguinte: que esse problema não é só do setor público. Também há corporações privadas que sobrevivem graças a recursos arrecadados compulsoriamente. Zona Franca de Manaus, Sistema S, crédito subsidiado, medidas de proteção contra a concorrência…
Temas de uma reforma tributária?
Há uma bela proposta de reforma tributária na Câmara, a PEC 45, que é simples de se fazer. É o que a imensa maioria no mundo já faz. Adotar o IVA (Imposto sobre o Valor Agregado). Você tem uma empresa, pega as notas fiscais de tudo que vendeu e as de tudo o que você comprou durante o ano, tira uma da outra e paga sobre a diferença uma alíquota, por exemplo, de 25%. Só isso.
E quem é contra?
O setor de serviços se levanta e diz ‘não quero pagar imposto como o resto da sociedade. Sou advogado, sou juiz, sou economista, sou editor de livros…’ Em suma, nada anda porque temos um País disfuncional em que o Estado concede benefícios discricionariamente.
Acha que isso ficou mais transparente com a pandemia?
Acho que não. O que percebo é que a pandemia está acirrando esses pequenos interesses. Teremos regras para todos, cuidando dos vulneráveis? Não. Por que o setor A é mais importante que o B? Essa ajuda discricionária por setores é que é o problema. Basta você olhar a quantidade de recursos que têm sido concedidos pelos orçamentos públicos nos últimos anos.
Qual a mensagem que você deixa, quanto aos horizontes do País?
É uma nota de otimismo. O Brasil tem muitas distorções, no setor público e no privado. Mas também este é um País de muitas oportunidades, temos que enfrentar os problemas devagar, com muito debate. Buscando criar uma regra tributária em que iguais paguem imposto igual. Em que a política de gasto público cuide dos vulneráveis. Abrir a economia para o exterior. E determinar: ‘Olha, o Estado é para cuidar da educação, dos grupos mais pobres, não para proteger corporações ou setores produtivos”.
*PROFESSOR DE ECONOMIA NA FGV, FOI SECRETÁRIO DE POLÍTICA ECONÔMICA DO MIN. FAZENDA (2003-2005) E VICE-PRESIDENTE DO ITAÚ UNIBANCO. É PRESIDENTE DO INSPER DESDE 2015.
O ESTADO DE S. PAULO