O bom sistema tributário é aquele em que a organização do trabalho é a mesma sem e com tributação
O Estado de S.Paulo – Opinião Bernard Appy
Em artigo publicado recentemente no Valor Econômico (Guerra santa contra o lucro presumido), o professor Marcos Cintra defende que não faz sentido comparar a tributação da atividade unipessoal dentro do regime de lucro presumido (LP) com a tributação de um trabalhador assalariado. Segundo o artigo, a relação de trabalho possui várias características que a distinguem da atividade autônoma e sem subordinação do sócio da empresa do LP. Do meu ponto de vista, a posição de Cintra está completamente equivocada.
O argumento mais importante é que a tributação não deveria distorcer a forma de organização do trabalho. Para entender esse ponto, é útil pensar num cenário hipotético em que não há tributação. Neste cenário, as empresas vão decidir se, para a realização de um serviço, vão utilizar seus próprios empregados ou se contratarão o serviço autônomo e sem vínculo do sócio de uma empresa – já consideradas todas as diferenças resultantes da legislação trabalhista. Em um sistema tributário bem desenhado, a tributação da renda deveria reduzir proporcionalmente a renda disponível do empregado e do sócio da empresa, mas não deveria alterar a forma de contratação observada no cenário sem tributação. Não é isso que ocorre no Brasil.
No Brasil, o trabalho do empregado formal de alta renda é muito mais tributado que o trabalho do sócio de uma empresa do LP que opera com alta margem de lucro. A diferença pode ser monumental, com a alíquota marginal da tributação da renda variando de cerca de 40% para um empregado formal com salário superior a R$ 6,5 mil a 13,6% para um sócio de empresa do LP que opera com margem de lucro de 80% e tem renda mensal de R$ 200 mil. Tal desequilíbrio decorre, em parte, de diferenças na incidência de tributos sobre a renda, mas também do recolhimento, pelo empregador, de contribuição sobre a folha, que – quando a remuneração do empregado excede o teto do salário de contribuição (R$ 6,4 mil) – é equivalente a um tributo sobre a renda, pois não gera benefício para o trabalhador.
Vale notar que a menor tributação do sócio da empresa do LP não se verifica apenas em relação ao trabalhador assalariado, mas também em relação ao profissional autônomo que opera como pessoa física, cuja tributação é muito semelhante à do assalariado (inclusive no recolhimento de contribuição para a previdência pela empresa contratante). Neste caso, não há sequer como argumentar que a diferença se deve às características de subordinação e habitualidade do trabalho assalariado.
Essa falta de neutralidade na tributação da renda do trabalho tem muitas consequências. A mais aparente é a absoluta iniquidade, com a alíquota média efetiva incidente sobre a renda de um sócio de empresa do LP com renda de R$ 200 mil/mês sendo cerca de 40% da alíquota incidente sobre a renda de um trabalhador assalariado com renda de R$ 20 mil/mês.
Mas a falta de neutralidade também tem consequências relevantes para a eficiência e o crescimento econômico. Ao impor uma tributação muito menor sobre a renda do sócio da empresa do LP relativamente à renda do empregado formal e do autônomo PF, o sistema brasileiro leva a que uma parcela maior do trabalho seja prestada por sócios de empresas do LP, ainda que isso seja menos produtivo.
A empresa com vários empregados pode ser mais eficiente na obtenção de clientes, no compartilhamento de custos (p. ex., com secretária e aluguel), na distribuição de tarefas e na qualificação de seus trabalhadores. Ainda assim, o sistema tributário brasileiro induz a prestação do mesmo serviço, de forma autônoma e menos eficiente, pelo sócio de uma empresa do LP.
O bom sistema tributário, como mencionado anteriormente, é aquele em que a organização do trabalho é a mesma sem e com tributação. É por conta da falta de compreensão de questões simples como essa que, no Brasil, se defendem políticas que fazem com que o País seja injusto e cresça menos do que poderia.
*DIRETOR DO CENTRO DE CIDADANIA FISCAL