Integrante do governo há até poucos meses, o economista Mansueto Almeida costumava ser apontado como o “bombeiro” do ajuste, pela habilidade de apagar incêndios a cada tentativa de aumento de gastos, subsídios e incentivos fiscais. Fora da equipe econômica do ministro Paulo Guedes, mas observador atento das contas públicas, o ex-secretário do Tesouro Nacional alerta que o País precisa começar já um debate sério da revisão das renúncias fiscais (quando o governo abre mão de parte da sua receita, em geral com a justificativa de estimular a economia) para não haver aumento de impostos mais à frente.
Mansueto compara a revisão das renúncias ao movimento que ocorreu no passado recente e que permitiu, por exemplo, a aprovação da reforma da Previdência. Ele diz que o corte é difícil, mas necessário. Em 2002, as renúncias correspondiam a 2% do PIB. Hoje, esse número chega a 4%. “Mesmo que no futuro aumente a tributação sobre os mais ricos, se entrarmos numa trajetória com déficits fiscais tão grandes, vai aumentar a tributação em cima de todo mundo”, prevê.
Do grupo de economistas fiscalistas, que defendem o ajuste das contas públicas para o Brasil crescer, Mansueto afirma que o Brasil gasta muito, embora o que consiga de redução de desigualdade seja muito pouco. “Eu defendo ajuste fiscal com melhor distribuição de renda”, diz o ex-secretário, que assumirá em janeiro o cargo de economista-chefe do BTG.
● É possível para o governo sair de cena, retirando estímulos, mesmo numa segunda onda da pandemia?
Se tiver uma segunda onda da covid-19, o governo não vai ter o mesmo espaço para reagir da forma que fez na primeira. Esse vai ser um problema. O setor público só voltará a ter superávit (quando as receitas superam as despesas, sem levar em conta o pagamento dos juros da dívida) em 2027 , mesmo cumprindo o teto de gastos (regra da Constituição que impede que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação). É um período muito longo. Se tiver segunda onda, possivelmente teremos de fazer coisas mais radicais no período após essa segunda onda.
● De qualquer forma? A população precisará ser assistida?
Sim, vai. Mas não precisa gastar exatamente o que gastou agora. Por exemplo, havia pessoas do Bolsa Família que há anos recebiam R$ 190 por mês (benefício médio do programa). Esse era o programa social mais bem avaliado. Nessa crise, quando foram instituídas as novas regras do auxílio emergencial, parte das pessoas do Bolsa que recebiam R$ 190 por mês passaram a receber R$ 1,2 mil. É claro que tem de proteger as pessoas de baixa renda. Mas será que não se exagerou no desenho dos programas? Essa é a questão.
● Com a pandemia, o ajuste fiscal se transformou na antítese do combate à desigualdade social. Os fiscalistas, grupo do qual o sr. faz parte, são vistos pelos críticos como vilões. Como o sr. vê essa polarização?
Estão polarizando de forma errada. Existem vários estudos acadêmicos que mostram que o Brasil tributa muito. A carga tributária até 2019 era em torno de 33% do PIB. É muito acima da média. O problema do Brasil não é gasto público baixo. Ninguém está defendendo corte radical do gasto público. O Brasil gasta muito e o que temos de redução de desigualdade é muito pouco. Tem de mudar os programas, a composição do gasto, para privilegiar políticas mais distributivas. Eu defendo ajuste fiscal com melhor distribuição de renda. Tem de realocar o Orçamento e privilegiar programas como o Bolsa Família.
● Como?
É totalmente coerente restringir o abono salarial (espécie de 14.º pago a quem ganha até dois salários mínimos). Se não há consenso para acabar com ele, se reduz o abono, pega toda a economia e fortalece o Bolsa. Dá para conciliar a agenda para melhorar a distribuição de renda do País com o ajuste fiscal. O que não dá para acontecer é aumentar a transferência de renda, gasto com saúde, com educação, quebrar o teto de gasto, aumentar a carga tributária. Se fizermos isso, o aumento da carga tributária será brutal. É engodo achar que aumentar gasto sem limite vai resolver o problema de pobreza do País. Se fosse assim, teríamos resolvido na década de 80. O Brasil tem carga tributária semelhante à da Inglaterra, mas o efeito na redução da desigualdade de renda (medido pelo índice Gini), quando olhamos o efeito da tributação e do gasto público, é metade do que ocorre na Inglaterra.
● A saída do ajuste vai passar por aumento de impostos para o andar de cima, os mais ricos?
Em relação à média de 2011 e 2013, o governo federal perdeu dois pontos porcentuais do PIB de arrecadação. Vamos ter de recuperar um a dois pontos do PIB. Parte disso vai voltar com crescimento. Mas vamos ter de fazer um esforço maior na área de arrecadação. Tem de mexer com o que chamamos de benefícios tributários, aqueles regimes especiais de tributação. Não podemos ficar até 2027 com déficit primário.
● De que forma?
Depois da crise, temos de rever as renúncias tributárias, começar um programa, tentar sensibilizar a sociedade para isso. Tem de começar por aí. Além disso, qualquer projeto que estimule o crescimento da economia, como reforma tributária e maior integração com o resto do mundo, vai ajudar na arrecadação. Em último caso, se não conseguirmos cortar as renúncias e o crescimento da economia não for suficiente, lá na frente teremos de ter uma discussão de carga tributária. É essencial avançar com o que podemos para não ter aumento de carga.
● Mas rever renúncias está nos planos do governo há quatro anos e nada se consegue…
É muito difícil. Por isso, tem de começar esse debate para, ao longo do tempo, ter algum consenso para fazer uma coisa. Não vai conseguir rever todo aumento de benefícios tributários que ocorreu nos últimos 15 anos. Em 2002, eles eram 2% do PIB. Hoje, são mais de 4%. Se ganhar 1 ponto porcentual do PIB, já fico satisfeito. Mas esse debate tem de começar. Muita coisa que é difícil, quando começa o debate, depois de algum tempo se torna viável. Como aconteceu com o programa de subsídios. O Brasil por mais de 30 anos usou bancos públicos para dar subsídios. E isso mudou radicalmente nos últimos quatros anos. A reforma da Previdência era vista como impossível há três anos e depois se conseguiu fazer.
● No grupo de renúncias, o que é mais fácil cortar?
Não tem nada fácil, mas temos de começar o debate. Por exemplo, quando uma pessoa completa 65 anos no Brasil, a faixa de isenção do Imposto de Renda dobra. Por que o critério é idade? O critério tem de ser de renda. Quem não tem dinheiro para comprar remédio, o governo tem de ajudar. Mas tem gente com 65 com renda altíssima. Esse tipo de coisa tem de explicar para mudar. Tem gente que recebe abono salarial, que são pessoas de famílias de baixa renda, que justificaria. É um benefício adicional, mas às vezes é um jovem de uma família rica que está no primeiro emprego dele, com número de horas pequeno e que tem salário de dois mínimos.
● Mas abono não está na lista de renúncias.
Não, não está. É um programa. No grupo de renúncias, está o Simples, a Zona Franca de Manaus.
● Duas renúncias muito difíceis de mudar…
O problema do nosso Simples é a faixa de qualificação muito alta (o limite de receita bruta para enquadramento no Simples Nacional é de R$ 4,8 milhões por ano). Isso é algo que deveria ser revisto. O Brasil, em termos da definição de microempresa, do ponto de vista fiscal, tem a maior faixa de faturamento para classificar como benefício tributário. Outra questão de renúncia que não faz muito sentido é a tributação pelo lucro presumido (depois do Simples, o lucro presumido é o sistema mais fácil para calcular os impostos devidos pelas empresas que faturam até R$ 78 milhões ao ano. Por ele, é calculada uma base que varia de 1,6% a 32% do faturamento, conforme a atividade). Tem profissional liberal que ganha o mesmo salário, só que um é CLT (ou seja, com carteira assinada) e outro é lucro presumido, e a tributação é bem diferente. Esse tipo de coisa vai mudando aos poucos. Talvez não se consiga cortar R$ 120 bilhões, mas se conseguir R$ 40 bilhões, R$ 50 bilhões, já ajuda muito.
● É cortar as renúncias para pessoas e setores específicos ou todo mundo vai pagar a conta?
Sem dúvida. Sabe a razão? O Brasil já tem um bocado de imposto ruim, imposto sobre faturamento. Por que o Brasil tem tanto imposto ruim? O mercado de trabalho não comporta de tributação o que o País precisa para funcionar. Mesmo que no futuro aumente a tributação sobre os mais ricos, se entrarmos numa trajetória com déficits fiscais tão grandes, vai aumentar a tributação em cima de todo mundo. Não só os mais ricos. A tributação dos mais ricos não será suficiente. O desafio é tentar manter o teto de gastos e rever o que for possível de renúncias e ver como a recuperação da economia vai impactar a arrecadação.
● O governo prioriza no Congresso uma pauta que ainda não é fiscal…
Em algum momento, isso vai ter de voltar. Vamos ter que aprovar o Orçamento de 2021 e saber exatamente quanto é que o governo tem para gastar. Eventualmente, se houver algum atraso, entra em 2021, executando a despesa proporcionalmente, o que sempre faz quando não tem a aprovação do Orçamento. Se tivéssemos mais claro o que é o Orçamento de 2021, era melhor. Mas, se nos próximos meses, conseguirmos desatar esse nó, mesmo que passe do final do ano, é importante que até o final de janeiro tenhamos clareza do que será o Orçamento de 2021 e o que o governo vai colocar de fortalecimento de gatilhos na PEC emergencial. É preciso que fique claro nos próximos meses qual vai ser a direção.
● Não é um problema maior o Orçamento ficar para 2021?
Não vejo. O maior problema são as declarações desencontradas em relação ao teto de gastos. Todo o debate de teto de gastos que levou a incertezas foi muito mais sério do que o atraso na aprovação do Orçamento. Atrasar um, dois, três meses não é um grande problema.
● Do ponto de vista social, como fica a população que realmente que precisa do auxílio?
A América Latina e o Brasil sempre tiveram uma economia informal muito grande, entre 30% e 40%. Ouvi pessoas falando que deveria colocar todo mundo da economia informal no programa de distribuição de renda. Nenhum país do mundo conseguiu fazer isso. É proibitivo. Teria de aumentar a carga tributária em mais de 8 pontos porcentuais do PIB. Nenhum país conseguiu reduzir a formalidade fazendo programas de transferência de renda. Os países combatem a informalidade treinando melhor seus trabalhadores, melhorando a educação. Tem de separar isso porque o auxílio pegou uma parte muito grande do auxílio e a restrição social diminuiu muito em relação a meses atrás. Teve um momento que a gente só podia ir para farmácia e supermercado.
● Qual a saída para crise?
Não tem bala de prata. Nenhum país tem. Tem países numa situação muito melhor do que a gente, como a Inglaterra, que estão numa discussão já de aumento de carga tributária no pós-covid. Estamos caminhando para um cenário em que o ajuste fiscal terá de continuar nesse governo e será a principal pauta do próximo governo e talvez do presidente que será eleito em 2026. Não tem como terminar nesse governo. Quanto mais se comprometer de que vamos continuar, mesmo de forma gradual, com o ajuste, que ninguém vai quebrar regra e aumentar despesas feito louco, o mercado se acalma. Pode ser gradual.
● Terminada a eleição municipal, o que podemos esperar?
A situação fiscal dos municípios é melhor do que a situação dos Estados e da União, e as transferências de recursos federais neste ano mais do que compensaram a perda que eles tiveram. Não devem ter grandes problemas de caixa no próximo ano com a sobra de recursos. Mas os problemas dos municípios, como nos Estados, também se concentra no gasto exagerado com pessoal (ativo e inativo) e baixa capacidade de investimento. A questão da dívida dos municípios é menos grave que nos Estados e são mais dependentes de linhas de empréstimos sem garantia da União (com aval do Tesouro, governadores e prefeitos conseguem crédito mais barato já que a União cobre em caso de calote). No mais, o desafio é o mesmo: controlar despesa com pessoal, melhorar arrecadação de IPTU, pois em vários municípios os valores desse imposto estão defasados, e controlar crescimento da despesa com pessoal ativo e inativo para ganhar espaço fiscal para investir em transporte público, segurança, saúde e educação.
● O Brasil vive uma situação de encruzilhada. Por um lado, uma melhora dos indicadores fiscais e de outro lado desconfiança em relação aos rumos das contas públicos. O que esperar para a economia?
Parte da melhora dos indicadores econômicos decorre do dinheiro que o governo injetou na economia, como o auxílio emergencial, que vai ser mais de R$ 400 bilhões no ano. Foi uma montanha de dinheiro. O déficit fiscal do Brasil para combater a covid vai ser equivalente ao dos Estados Unidos e da Inglaterra. A projeção é de um déficit nominal de 17% do PIB. É mais ou menos o que se espera de um país como os Estados Unidos, com uma grande diferença: eles financiam dívida de longo prazo com juros negativos. Não é o caso do Brasil.
● Há um autoengano do governo e de lideranças políticas em relação à recuperação daqui para frente?
A palavra correta seria essa. O ponto é que está muito difícil qualquer país do mundo fazer previsão muito acurada da economia. Estamos vendo o que está acontecendo em muitos países da Europa, que estavam com projeções e, agora, terão de ser revistas pela segunda onda. É muito difícil estimar qual será a velocidade. Não tem esse autoengano do Ministério da Economia e dos analistas privados. Estão todos destacando que o Brasil precisa aprovar medidas para fomentar o crescimento e mostrar compromisso com o ajuste fiscal. Se isso não acontecer, poderemos ter problemas mais à frente.
● O desemprego vem forte?
Quando olhamos o dado de emprego, o que vemos é algo bem atípico. Nem na crise de 2015 e 2016 tivemos queda da força de trabalho. As pessoas perdiam trabalho, mas procuravam trabalho. Agora, não. Tivemos 12 milhões que perderam emprego, mas só um milhão continuam a procurar. A recuperação do Brasil será algo também atípico em 2021. A taxa de desemprego vai aumentar porque parte dessas pessoas que deixaram de procurar emprego vai voltar a fazê-lo. Para 2021, todo mundo está trabalhando numa faixa muito ampla, com crescimento que pode ir de 2% a 3,5%. Isso mostra a incerteza.
O ESTADO DE S. PAULO